Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Livros

A língua de Carolina

Fidelidade à gramática desviante de 'Casa de Alvenaria' causa polêmica

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“Fui comprar jornal o Janio estava vençendo”, escreve Carolina Maria de Jesus (1914-1977) no volume 2 de “Casa de Alvenaria” (Companhia das Letras). Isso mesmo, sem pontuação e com cedilha em “vençendo”, como constava num dos cadernos em que ela escrevia compulsivamente.

Estamos falando do mais improvável fenômeno da história da literatura brasileira, uma escritora de talento máximo e escolaridade mínima que em 1960 conheceu o sucesso internacional com o best-seller “Quarto de Despejo”.

A fidelidade às idiossincrasias textuais da ex-catadora de papel, da sintaxe à grafia, é uma escolha da editora e do conselho editorial —coordenado pela escritora Conceição Evaristo e por Vera Eunice, filha da autora— que altera e amplia substancialmente o texto publicado em 1961 com edição do jornalista Audálio Dantas.

“Fomos direto aos originais, trabalhando o mais perto possível do texto de Carolina”, explica Conceição. “Pensar esse texto é pensar como as classes populares se apropriam da língua portuguesa, e ainda quem a normatiza.”

A decisão tem camadas. Conservar desvios gramaticais não intencionais, evitando encurtar sua distância para a norma culta como se fez no passado, torna Carolina um caso à parte no mercado editorial.

No entanto, é uma ideia bem mais fácil de defender do que a de preservar uma miríade de grafias alternativas sem valor autoral aparente, das esdrúxulas (“refêição”, “ladrôes”) às banais (“mêsa”, “cabêça”, “moralisadôr”).

Escritores de perfis socioeconômicos diversos cometem erros parecidos (vocês se surpreenderiam) e são corrigidos. Por que Carolina não é? A controvérsia nas redes anda quente.

“A manutenção dos desvios gramaticais de Carolina se presta apenas ao intuito de exotizar sua escrita”, escreveu em sua página no Facebook a professora de literatura da UnB Regina Dalcastagnè, para quem a nova edição mantém a autora “nas margens da literatura brasileira, vista como uma curiosidade”.

Não é uma crítica qualquer: Dalcastagnè tem importantes serviços prestados à causa da diversidade literária. Isso não a impediu de ser acusada nas redes de porta-voz da “branquitude”, como se propusesse pasteurizar Carolina.

Esta é a parte ruim da controvérsia, como de tantas hoje em dia —a premissa da má-fé de quem pensa diferente. A parte boa é repor em discussão a singularidade de uma autora que nossa literatura nunca soube bem como classificar. Pelo visto, continua não sabendo.

“O argumento básico é que a aquisição adversa ou alternativa da linguagem, no caso da Carolina, é um traço distintivo da voz, autoral portanto”, afirma Otavio Marques da Costa, publisher da Companhia das Letras.

A questão está longe de ser simples. Carolina aspirava evidentemente a um registro elevado. Manter seus erros intactos, como não se faz com outros autores, é ser fiel às suas intenções ou, ao contrário, traí-las?

Se a eliminação de grafias malucas como “môrdomo” parece destituída de contraindicação, o mesmo não se pode dizer de uma frase como esta, a cara de Carolina com sua mistura de concordância desviante e hipercorreção pronominal: “Eles fotografou-me”.

Em “O Sol na Cabeça” (Companhia das Letras), de 2018, Geovani Martins, um dos descendentes artísticos de Carolina, escreveu de forma memorável e, dessa vez, plenamente intencional: “Acordei tava ligado o maçarico!”. Vale comparar com a frase que abre esta coluna.

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