Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Estamos na maré da pós-verdade

Estudo mostra que razão vem perdendo espaço para a emoção há 40 anos

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"Post-truth" foi a palavra do ano de 2016 na língua inglesa. Os três Ts —Trump, terraplanismo e tosqueira— tinham acabado de mudar a cara do debate público no Ocidente, e para um número crescente de pessoas os fatos passavam a tomar surra das lendas.

Se hoje já não se fala tanto em pós-verdade, temo que isso indique seu fortalecimento e não o contrário. Ela se naturalizou. A negação de vacinas salvadoras desenvolvidas em tempo recorde —e da própria pandemia de Covid— exige doses pesadas da droga. A verdade virou pó.

Por coincidência, eu tinha acabado de ler um bom artigo acadêmico sobre aspectos linguísticos dessa desvalorização da racionalidade quando morreu seu principal ideólogo no Brasil.

Na imagem, há a frase "uma mentira repetida mil vezes vira verdade"
Post na pagina oficial do STF contra Fake News - STF no Twitter

Divulgador e produto da pós-verdade, Olavo de Carvalho (1947-2022) é um filósofo genial —no mundo em que a lenda espanca os fatos. Astuto com certeza foi, convencendo multidões disso. Mas foi acima de tudo o que do lado de cá da cerca —onde os fatos derrotam a lenda— se chama de picareta.

Para dar o triplo mortal de astrólogo gauche a guru da direita, Olavo surfou uma virada dramática na maré psicolinguística do mundo ocorrida nos anos 1980. Naquele momento, duas curvas —a da razão e a da emoção— inverteram suas trajetórias na conversa pública.

É o que indica a pesquisa a oito mãos chefiada pelo holandês Marten Scheffer, da Universidade de Wageningen, e publicada no fim do ano passado, em inglês.

Num trabalho inviável para seres humanos, mas que um computador tira de letra, o estudo mediu a ocorrência de dois conjuntos de palavras —um no campo da razão e da ciência, o outro no da intuição e das emoções— no universo dos livros publicados entre 1850 e 2019 em inglês e espanhol.

No primeiro time ficaram termos como análise, resultado, sistema, conclusão, cálculo, hipótese. No outro, alma, esperança, medo, mistério, imaginar, sentir, crer.

Parece pouco? Pense de novo. Estamos falando de peneirar zilhões de palavras em milhões de volumes. Praticamente "tudo" o que se publicou naquelas línguas em livro —ou tudo o que foi relevante a ponto de chegar às bibliotecas e à digitalização do Google, o que dá no mesmo.

De posse de seus achados, o estudo testou amostras de outras línguas e cada linha que saiu no jornal The New York Times no período. O resultado foi sempre o mesmo. Também não se viram diferenças significativas entre ficção e não ficção.

Resumo: houve uma queda contínua no número de palavras "emotivas" e uma subida igualmente consistente no de palavras "racionais" desde meados do século 19 até os anos 1980, quando as curvas se inverteram. A tendência pós-80 se mantém até hoje e sofreu aceleração a partir de 2007, coincidindo com a explosão das redes sociais.

O estudo não se aprofunda nas razões disso, limitando-se a referências vagas à perda de fé nos projetos coletivos e na justiça social, desilusão que acompanhou o individualismo e as políticas ditas neoliberais de Reagan e Thatcher.

Convém ter cautela com o uso de big data nas ciências humanas, um mundo que mal começa a ser explorado. Os autores da pesquisa reconhecem os riscos que correm, da manipulação que é inseparável da própria seleção de palavras ao anacronismo de atribuir sentidos atuais a termos de época.

Dei todos esses descontos, mas continuei com a impressão de que Scheffer e seus colegas podem ter esbarrado em alguma coisa grande.

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