Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Moïse e as tábuas da lei de Lynch

Preto e estrangeiro, congolês era a perfeita encarnação do 'intocável'

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As tábuas da lei desabaram seguidas vezes sobre Moïse. Eram as tábuas da "lei de Lynch", expressão americana nascida no século 19 e matriz do verbo "linchar". Havia um taco de beisebol também.

Nas tábuas de Moisés, o outro, estava escrito: "Não matarás". Mas os assassinos do imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, estavam seguros de que aquele corpo que esmigalhavam não pertencia exatamente a uma pessoa.

Como assim? O que Moïse tinha em falta –ou em excesso– para que sua morte a pauladas num lugar público e à vista de todos não tenha provocado imediata comoção, permanecendo mais de uma semana no limbo dos fatos irrelevantes?

Homem faz pose para foto
O jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, encontrado morto na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio - Facebook/Reprodução

As turbas de linchadores que ao longo da história se pautaram pela lei de Lynch para trucidar negros no Sul dos EUA se diferenciavam dos matadores de Moïse nesse aspecto. Adoravam uma publicidade.

Do século 19 a meados do século 20, contados aos milhares, esses linchamentos chegaram a se tornar um próspero ramo de entretenimento, com direito a cartões postais das vítimas trucidadas figurando entre os best-sellers do gênero.

"Os linchamentos eram em parte festivais, em parte câmaras de tortura, e atraíam milhares de espectadores que se tornavam cúmplices coletivos do sadismo público", conta a jornalista americana Isabel Wilkerson em seu livro "Casta – As Origens de Nosso Mal-Estar" (Zahar), lançado ano passado.

Ah, mas desde então o mundo evoluiu e hoje uma barbaridade dessas seria inconcebível, certo? Convém pensar melhor. Troque os cartões postais macabros do Alabama por visualizações no YouTube, um notável avanço tecnológico. O resto é muito parecido.

Como são parecidos o fazendeiro americano William Lynch (1742-1820), que a maioria dos etimologistas acredita ser o pai da "lei de Lynch", e os milicianos que transformaram todo o Rio de Janeiro em seu quiosque Tropicália particular.

Num caso e no outro, trata-se de impor uma lei própria, à margem da ordem legal, com julgamentos sumários e execução imediata das penas. Bandidagem pura, mas numa modalidade com a qual o Estado apodrecido se confunde cada vez mais.

Nos linchamentos de cem anos atrás, os xerifes também olhavam para o outro lado enquanto o pessoal se divertia. Entender por que faziam isso ajuda a entender por que, depois de apresentada a Moïse, a sociedade brasileira ainda consegue dormir o sono dos justos.

Nenhum de nós merece dormir o sono dos justos. Os que perderam o sono pelo menos sabem disso. Como sabem os que, como o colunista, capricham na retórica (estúpida, diria Caetano), latindo para o abismo civilizatório a nossos pés.

O massacre de Moïse é um crime racista? Até as areias da Barra da Tijuca sabem que sim. Séculos de escravidão o tornaram possível, e a cor da pele dos assassinos não tem nada a ver com isso. Mas Wilkerson inclui no debate a ideia de casta, como na Índia.

"A casta é a concessão ou negação de respeito, posição, honra, atenção, privilégios, recursos, benefício da dúvida e bondade humana a alguém com base no nível ou na posição que esse alguém, na percepção dos outros, ocupa na hierarquia", argumenta ela.

A distinção é sutil. A ideia de raça dá sustentação ao sistema de castas, mas este vai além dela. É mais onipresente e invisível, abraçado mesmo por aqueles que, julgando-se pessoas de bom coração, condenam o racismo. Preto e estrangeiro, Moïse era a perfeita encarnação do "intocável" brasileiro.

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