Entre tantos enigmas que a linguagem põe diante de nós, um dos mais difíceis de decifrar é por que o Brasil decidiu acreditar de pés juntos que a Esfinge encontrada por Édipo na entrada de Tebas diz a ele: "Decifra-me ou te devoro".
Trata-se, como se sabe, de um temperinho erudito dos mais apreciados por jornalistas e acadêmicos nascidos nesta terra, frequentemente citado em livros e artigos. Uma busca no Google traz mais de 20 mil resultados para "Decifra-me ou te devoro" e cerca de 13 mil para "Decifra-me ou devoro-te".
Ocorre que não existe essa frase —ou nada parecido com ela— no original de "Édipo Rei", a peça de Sófocles que é o grande veículo de propagação da mitologia esfíngica, ou em qualquer outra fonte do grego antigo.
Também não se encontram variações da fórmula em nenhuma outra língua além da nossa. Ou melhor, há ocorrências aqui e ali —todas as que capturei são traduções de textos brasileiros.
Não vou dizer que esgotei as pesquisas possíveis. Muito longe disso: mal comecei a cavar. Mas parece bastante claro que "Decifra-me ou te devoro" é uma paráfrase, um comentário sobre Sófocles, uma daquelas frases famosas que jamais foram pronunciadas por seus supostos autores.
Nessa galeria figuram o "comam brioches" de Maria Antonieta e o "discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo" de Voltaire, entre outras criações imaginosas.
Até aí, normal. O próprio enigma apresentado pela Esfinge de Tebas —na versão mais popular, "o que é que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia e três à noite?"— não consta da peça, mas foi acrescentado à história, em múltiplas variações, por gerações de comentaristas e tradutores.
Chegamos assim ao miolo do enigma: "Decifra-me ou te devoro" é um contrabando como tantos, mas tudo indica que difere dos exemplos anteriores, que estão disseminados mundo afora, por ser exclusivamente brasileiro.
Como assim? Quem terá cunhado a bela frase que, com sua síntese perfeita da postura ameaçadora da Esfinge —e provavelmente sem que seu autor tivesse tal intenção—, veio a enganar tantas gerações de compatriotas?
Deixo aos leitores com vocação de detetive o desafio de perseguir em bases de dados digitais e quilômetros de prateleiras empoeiradas a fonte primária de "Decifra-me ou te devoro".
Adianto uma pista: a ocorrência mais antiga trazida pelas primeiras buscas é de 1880 e faz as suspeitas recaírem sobre Machado de Assis. Em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", o narrador defunto conta que, quando vivo, teve certa manhã a ideia de criar um emplasto, um remédio mágico "destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade".
A ideia se pavoneou à sua frente, ele a contemplá-la. "Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te." Ahá!
Machado não está falando diretamente da Esfinge. Em toda a sua obra menciona o monstro mitológico de Tebas em apenas dois contos, sempre de passagem e sem sombra dos verbos decifrar e devorar nas imediações.
Será que a frase de "Memórias Póstumas" citava uma versão da história da Esfinge que o tempo veio a obscurecer? Ou Machado criou o dito ele mesmo, cabendo a seus leitores futuros associá-lo a Sófocles? Se for este o caso, trata-se de obra coletiva ou também aí se pode encontrar um autor?
Não, ninguém vai nos devorar se não decifrarmos isso. Mas pode ser divertido.
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