Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Faço votos de que o voto seja sagrado

História da palavra ensina a não eleger quem não honra o sufrágio

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O ato de votar —ou melhor, a palavra que nomeia esse ato— nasceu no latim clássico com sentido religioso. Isso mesmo: o voto que está na base das modernas repúblicas democráticas laicas teve como primeira acepção uma promessa feita aos deuses, em troca da concessão de alguma graça.

Isso quer dizer muita coisa —mas, cuidado, não quer dizer um outro tanto. Como observou Borges, saber que o termo cálculo tem origem na palavra pedrinha não torna ninguém capaz de calcular, eis o limite da etimologia.

Por outro lado, o conhecimento de que nossos antepassados usavam seixos em seus primeiros cálculos é historicamente relevante. No caso do voto, a expressão de um desejo ou compromisso é o fio que liga seus diversos sentidos, do religioso ao político.

Ilustração de uma urna eletrônica e uma mão votando
Gabriel Cabral/Folhapress

Entrando pelo terreno da metáfora, é possível afirmar também que a vontade do eleitor é uma oferenda no altar da democracia, ou seja, sagrada.

A imagem é meio brega? É, mas tem valor num momento em que o presidente Jair Bolsonaro, convencido da derrota nas urnas e com medo de ir para a cadeia, anuncia abertamente a intenção golpista de jogar dezenas de milhões de votos no lixo.

Nada disso deve obscurecer um fato comprovado mil vezes —o de que política e religião são elementos que funcionam melhor quando não se misturam. Vale a pena falar um pouco do percurso da palavra para ilustrar essa separação.

O verbo latino "vovere", prometer solenemente, do qual derivou o particípio "votum", descortinava a princípio todo um comércio espiritual entre o humano e o divino. Que, diga-se de passagem, até hoje se faz presente de forma muito concreta nos ex-votos do catolicismo tradicional.

Ex-voto, para quem não sabe, é o objeto, em forma de pintura ou escultura, que fiéis depositam na entrada de certas igrejas como pagamento de promessas. A cura de uma fratura de fêmur, por exemplo, pode resultar numa perna de madeira em tamanho real.

No próprio latim clássico o "votum" passou por uma ampliação de sentido significativa para expressar desejo ou compromisso —como nos votos nupciais—, mas sem chegar à acepção de sufrágio. O político e orador Cícero (106-43 a.C.) usou "mea vota" com o sentido de "meu amor".

O latim eclesiástico da Idade Média conservou tudo isso, fazendo a ponte para que chegasse à linguagem contemporânea, vivo e serelepe, o uso da palavra como expressão de desejo —nos votos de feliz aniversário, de feliz ano novo, de pronto restabelecimento etc.

Já estávamos meio longe da devoção religiosa original, mas faltava um último passo. Este foi dado fora do latim, que para o voto político-eleitoral estava satisfeito com o velho termo "suffragium".

Consta que o primeiro uso de voto com tal sentido se deu no Parlamento inglês em 1550, na infância da Idade Moderna. Na língua de Shakespeare (que só ia nascer 14 anos depois, aliás) fica mais clara a separação entre uma coisa e outra.

O sentido primitivo do termo, como o que se vê em votos de feliz aniversário, tinha chegado ao inglês na forma da palavra "vow". O voto-sufrágio, "vote", foi buscado diretamente no latim "votum" para cumprir esse papel.

Só cerca de um século e meio depois a nova acepção desembarcaria no francês e em outras línguas, neolatinas ou não, numa carreira linguística repleta de vitórias.

No mais, meus votos de bons votos em outubro —de preferência num candidato que não queira acabar com eles.

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