Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Retrato de um Brasil doente

Barbárie bolsonarista recomenda espanar o pó de um clássico controverso

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No embate entre civilização e barbárie, Jair Bolsonaro não esconde de ninguém —pelo contrário, alardeia com orgulho— que é barbárie desde criancinha. E tome chumbo em quem achar isso ruim.

Seu já histórico alerta sobre o risco de Lula transformar clubes de tiro em bibliotecas traduz com tanta perfeição —além de uma candura suicida— o ancestral traço brasileiro de ódio às coisas do espírito que me remeteu a um dos livros que mais se ocuparam desse embate em nossa história.

Me refiro a "Retrato do Brasil" (Companhia das Letras), de Paulo Prado. Lançado em 1928, precursor dos grandes ensaios de interpretação do país que marcariam aquele tempo, é um livro controverso.

Pessoas observam livros em prateleiras da Bienal do Livro de São Paulo
O sucesso da Bienal do Livro de São Paulo prova que o Brasil não é mais aquele descrito por Paulo Prado, apesar de Bolsonaro - Adriano Vizoni - 2.jul.22/Folhapress

Fez muito barulho na época, mas terminou ofuscado por "Casa-grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros livros mais resistentes ao tempo. Com boas razões.

Filho da aristocracia paulistana, frequentador de círculos intelectuais europeus e estudioso de nossa história colonial, Prado foi o mecenas da Semana de Arte Moderna e um angustiado com o brejo em que a vaca do Brasil chafurdava.

Escrito com arte e encharcado de um elitismo pessimista que beira a caricatura, seu "Retrato do Brasil" — que tem o subtítulo "Ensaio sobre a tristeza brasileira"— descamba para determinismos psicossociais e raciais que, mais que datados, podem soar ultrajantes hoje.

Dados todos os descontos, merece ser lido. A missão que a inteligência brasileira tem pela frente — explicar a exuberância inicial e a resistência ainda notável de um tumor maligno de agressividade máxima chamado bolsonarismo— pode ter um aliado ali.

Quem sabe descobrimos que o "Homo bolsonarus" já estava inteiro no retrato desolador que Prado traçava da alma brasileira, cheia de cicatrizes da violência miliciano-bandeirante, com sua "indigência intelectual e artística completa"?

Ex-garimpeiro e hoje aliado do garimpo, inclusive o ilegal, o presidente se encaixa no perfil do homem extenuado pela "fascinação do ouro, exclusiva como uma mania", presa de uma cobiça que é "entidade mórbida, uma doença do espírito".

Preguiçoso e avesso ao trabalho, Jair aparenta padecer também daquela "hipertrofia do patriotismo indolente" acompanhada de "profunda fadiga, que facilmente toma aspectos patológicos, indo do nojo até o ódio".

Em seu governo, inimigo da fiscalização e favorecedor de passagens de boiada, o país se tornou mais "arruinado pela exploração apressada, tumultuária e incompetente de suas riquezas minerais", mal já denunciado por Prado.

Se éramos há cem anos uma terra "sem instrução, sem humanidades, sem ensino profissional", em que "a cultura intelectual não existe, ou finge existir em semiletrados mais nocivos do que a peste", deve-se reconhecer que desde 2018 retrocedemos um bom trecho de volta àquele estado, com o MEC entregue à corrupção e o investimento em educação caindo ano a ano.

Em outros aspectos, reconheça-se que Prado exagerou: "Não se publicam livros porque não há leitores, não há leitores porque não há livros. Ciência, literatura, arte —palavras cuja significação exata escapa a quase todos".

O sucesso da Bienal do Livro de São Paulo prova que o Brasil não é mais aquele, apesar de Bolsonaro. A rejeição que a maioria da população devota a seu governo é outro sinal promissor. Mas que a vaca e o brejo continuam ali, continuam.

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