Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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O mundo das palavras pode esperar

Origem do termo 'imundo' é bacana, mas varrer a imundície é muito mais

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O mundo das palavras é tão vasto e maravilhoso que o cronista dedicado a ele jamais ficará sem assunto, por mais que se policie para nunca repetir um tema.

A menos, claro, que o mundo propriamente dito —​aquele mais vasto ainda, do qual as palavras são apenas um pedaço— o obrigue a isso. Como vem acontecendo no Brasil desde a eleição de 2018.

Enquanto Jair Bolsonaro for presidente, ameaçando inviabilizar todo projeto de um país mais decente e sustentável, menos desigual e racista, resta ao cronista pedir desculpas por bater na mesma tecla. O mundo das palavras que espere.

O presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira/Folhapress

Falando em mundo, a gente pode muito bem ficar tentado a lembrar que o "mundus" do latim clássico tinha uma carga de sentido do tamanho do universo, tanto que nela cabia até a surpreendente acepção de "limpo, são, puro". Seria divertido e instrutivo contar essa história, não seria? É ela que explica a palavra imundo, ora veja.

Sejamos sinceros: quem tem tempo a perder com uma relíquia dessas? Por mais saborosa que seja, a etimologia de imundo está fadada a soar fútil enquanto não formos capazes de varrer de Brasília toda aquela imundície.

E nem adianta reclamar, é assim mesmo que deve ser. Existem prioridades na vida. O corpo doente não gasta energia dançando forró porque precisa de todas as forças para recuperar a saúde. Depois, ah! Depois a gente desmente a lenda de que forró veio de "for all".

Por ora não dá, lamento. A força gravitacional exercida por um projeto fascista, criminoso, regressivo, teocrático e anti-humanista é irresistível. Quer dizer que não falar dele seria um crime? Pior do que isso: não falar dele é absolutamente impossível.

Explico. Pode-se contar, claro, que a palavra fuzil nasceu no latim vulgar com o sentido de fogo, ou melhor, pedra de fazer fogo, pederneira, pedra de isqueiro, e chegou a batizar até o relâmpago antes de, séculos depois, virar nome de uma arma de fogo de grande poder de destruição.

Certo. O que não dá para fazer é contar ou ler essa história sem ser lançado à realidade alarmante de uma política de armamento maciço da população que já começou a engordar o arsenal do crime organizado e que, na melhor das hipóteses, levaremos muitos anos para reverter.

Outro exemplo é o da palavra cadeia. Sua fascinante polissemia —da prisão à sequência de coisas encadeadas— é explicada pelo latim "catena", literalmente corrente, peça formada por argolas de metal entrelaçadas.

É por isso que a palavra que dá nome ao cárcere, pela ideia de aprisionamento, é a mesma que se usa para falar da reação em cadeia e da cadeia de lojas, pela ideia de elos.

Tudo muito bonito, mas essa cadeia de pensamentos também nos leva de volta a Bolsonaro e seus arreganhos golpistas alimentados pelo medo de ir para a cadeia.

Fazer o quê? O cronista espera que em janeiro tudo esteja diferente, a ponto de lhe permitir lembrar que o nome do primeiro mês do ano homenageia Janus, deus bifronte que olha para trás e para a frente ao mesmo tempo.

Olhando para a frente agora, vale acreditar que em 2023 olharemos para trás com um misto de alívio, vergonha e vontade de reconstruir o que está em cacos.

E que o clima político no país será finalmente propício a contar a história da palavra grega "klíma", que queria dizer declive, inclinação (de cada região da terra em relação ao sol), entre outras belezas do vasto e maravilhoso mundo das palavras.

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