Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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O vampiro foi convidado, e agora?

Histórias que ajudam a iluminar este escuro agosto pré-eleitoral

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Os seres humanos não são a única espécie que se comunica, longe disso. Mas só nós temos linguagem, um sistema simbólico complexo, e tudo indica que só nós contamos histórias. Quanto mais confuso parece o mundo, mais precisamos de histórias. Vejamos.

Uma história possível para dar conta deste agosto pré-eleitoral cheio de presságios funestos remete à cultura pop em torno do vampiro: em muitos livros e filmes (embora não em todos), essa criatura das trevas só pode fazer mal à vítima se for convidada por ela a entrar em sua casa.

Bem, em 2018 o Brasil fez exatamente isso: pelo voto, convidou um vampiro a entrar, com direito a tapete vermelho e tudo. O vermelho do tapete era de sangue, como muitos já sabíamos e a maioria logo ia descobrir —mas aí era tarde.

Um vampiro convidado provoca muito estrago, o que é mais um mérito dessa velha mitologia europeia como iluminadora do presente: tendo feito um governo caótico, arruaceiro e assumidamente dedicado à destruição institucional, Jair Bolsonaro deixará ao sucessor uma herança de ruínas que prenuncia anos duríssimos de reconstrução.

Jair Bolsonaro em culto na Câmara dos Deputados, nesta quarta (3) - Pedro Ladeira/Folhapres

Mas primeiro é preciso tirá-lo da casa. Depois que um monstro hematófago entra, haja alho, água benta, estaca e luz do sol —isso sem falar de sorte— para o morador se livrar dele.

Com sólida rejeição ao vampiro da maioria dos eleitores e um amplo arco de manifestações pró-democracia, inclusive um manifesto da Fiesp, o Brasil chegou ao clímax dessa história de terror.
O dono da casa decidiu finalmente —com alguns anos de atraso, mas decidiu— que sua vida depende de expulsar a aberração. A aberração esperneia, guincha, ameaça, exibe os caninos pontudos e avisa que vai dar trabalho para sair. Segundo alguns ministros, disse que vai haver "morte".

Hora de contar uma segunda história, mais uma metáfora desse agosto esquisito: a do bandido que, apanhado em flagrante e cercado pelos sete lados, toma como reféns os moradores da casa que estava saqueando.

Todo mundo já viu filmes policiais e de ação que têm variações em torno desse tema. Em troca da vida dos reféns, o criminoso exige condições de fuga e asilo, digamos, na embaixada da Hungria. Não costuma acabar bem.

Refém é uma palavra oriunda do árabe vulgar "rihan" (no árabe clássico é "rahn"), ou seja, penhor. Um dos itens da herança vocabular deixada no português e no espanhol pela longa ocupação muçulmana da península Ibérica, entre os séculos 8 e 15.

Outra palavra daquela safra é algoz, do árabe "al-gozz", carrasco. Para não ser o algoz do refém, o bandido exige a anistia de seus crimes.

Às vésperas do bicentenário de sua independência política —um 7 de Setembro que deveria ser glorioso, mas que um presidente acuado e golpista encheu de maus agouros—, o Brasil é refém do vampiro que convidou a entrar.

E quem diz que sabe direitinho como essa história vai acabar está mentindo.

Falando sobre os signatários —mais de 700 mil— do manifesto pró-democracia que será lido no próximo dia 11 na Faculdade de Direito da USP, Bolsonaro disse: "Esse pessoal que assina esse manifesto é cara de pau, sem caráter, não vou falar outros adjetivos porque sou uma pessoa bastante educada".

Aí a história mistura terror e comédia, como no gênero híbrido "terrir". Sem algum alívio cômico vai ser mesmo difícil encarar o que vem por aí.

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