Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Patos mancos só tomam café frio

O que acontece quando toda a República aplaude a urna e o presidente não

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O título aí em cima, que junta duas expressões divertidas do vocabulário político para falar de governantes que estão de saída do poder, me veio à cabeça quando vi a antológica cena em que toda a República aplaude o elogio à urna eletrônica feito por Alexandre de Moraes em sua posse como presidente do TSE.

Quer dizer, toda a República menos seu atual presidente. O ar infinitamente desacorçoado de Jair Bolsonaro naquele momento renova e revitaliza a iconografia histórica do pato manco a quem, de hoje em diante, servirão cafés cada vez mais frios.

Se o Pato Donald fosse atropelado por um tanque fumacento do Exército, não pareceria mais manco do que Bolsonaro ao ver seu delírio golpista ser declarado oficialmente delirante por todos os principais atores institucionais do país.

Imagem mostra Bolsonaro ao centro, ao lado de Alexandre de Moraes e outros ministros; ele olha para Lula e Dilma, que estão à frente
Posse de Alexandre de Moraes no TSE reuniu ministros de Estado, embaixadores e ex-presidentes, como Lula e Dilma, além de Jair Bolsonaro - Mateus Vargas - 17.ago.22/Folhapress

Deve-se somar a isso o fato de que, apenas um dia antes e a um mês e meio da eleição, as últimas pesquisas tinham jogado água fria em seu sonhado café (meio quilo a R$ 20) de uma virada eleitoral contra o favorito Lula.

Pato manco é a tradução literal de "lame duck", expressão do vocabulário político americano que começou a circular no Brasil há cerca de meio século, a princípio apenas no noticiário internacional.

Um de seus registros mais antigos em nossa imprensa é uma notícia do extinto diário carioca Jornal do Brasil sobre o presidente Richard Nixon em 1973, quando o caso Watergate já estava em andamento. Curiosamente, a expressão vinha com iniciais maiúsculas: "Nixon é um Pato Manco".

Nascida no século 18 para designar uma pessoa ou empresa falida, incapaz de pagar suas dívidas e obrigações, a expressão circulava nos EUA desde meados do século 19 com o sentido de político que cumpre penosamente o fim de seu mandato após não conseguir se reeleger —e mais tarde, por extensão, de qualquer um que viu sua Bic ficar sem tinta, esteja em que ponto do mandato estiver.

Uma curiosidade etimológica extra é que "lame" (manco, deficiente) é uma palavra vinda do inglês antigo "lama". Qualquer semelhança com a nossa lama pode até ser providencial mas é, sim, mera coincidência.

O melhor equivalente nacional do "lame duck" é o do mandatário em fim de linha a quem passam a servir café frio no próprio palácio de governo. O jornalista Elio Gaspari, ilustre colega de Folha, foi o responsável por consagrar a expressão.

Em 2002, Gaspari perguntou ao senador José Sarney: "No final do seu governo o café vinha frio?". A resposta do ex-presidente (1985 a 1990), que em 1987 fora chamado de "lame duck" pela revista Newsweek e que estava esta semana na plateia do TSE aplaudindo Moraes: "Nunca. Isso é folclore".

Nada disso quer dizer que Jair Bolsonaro já não ofereça risco à democracia brasileira. No entanto, o apoio geral e efusivo ao novo presidente do TSE —desde já uma das cenas mais marcantes do atual governo— ampliou seu isolamento a um nível inédito.

Se a "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito" "aumentou o preço do golpe", como bem observou Celso Rocha de Barros, a cerimônia de posse de Alexandre de Moraes elevou esse preço a patamares estratosféricos.

Era isso que se podia ler nos olhos perdidos de Jair Bolsonaro enquanto seu grande desafeto era ovacionado: o olhar do trabalhador brasileiro médio diante da vitrine em que se desnudam as curvas aerodinâmicas de uma pornográfica Ferrari.

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