Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Qual é o sabor da nossa língua?

Clichê português destaca o açúcar, mas nossa fala tem dendê, pimenta etc.

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O último dia 5 de maio, quando se comemorou o Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi a deixa para mais uma série de repetições de um clichê enjoativo de grande sucesso em Portugal: "Os brasileiros falam português com açúcar".

No departamento dos chavões deslavados, trata-se de um dos benignos. Costuma ser empregado em nossa defesa, por assim dizer, para apontar o que haveria de doce e sedutor numa fala cheia de vogais arreganhadas e gerúndios curvilíneos.

Se as escaramuças entre o português lusitano e o português brasileiro têm feito muita fumaça por lá nos últimos anos, alimentadas por fatores como resistência ao Acordo Ortográfico, imigração em massa e sucesso de youtubers, o "português com açúcar" parece uma tentativa —paternalista, mas não se pode ter tudo— de adoçar amarguras.

Simpático ou não, chavão é. De tanto topar com ele —inclusive usado com cômica solenidade por quem acredita enunciar uma sacada nova e genial—, fui ficando intrigado. Preocupado também: se o português falado por 80% dos lusoparlantes do mundo for tão açucarado, periga nossa língua estar diabética.

Duvido que tão elevada taxa de glicose estivesse nos planos do português Eça de Queirós quando lançou as bases desse lugar-comum na revista satírica "As Farpas", em 1872, ao mencionar "aquela estranha linguagem, que parece português —com açúcar".

"Engenho de Açúcar" (c. 1808-15), de Koster, imagem contida no livro  Adeus, senhor Portugal
"Engenho de Açúcar" (c. 1808-15), de Koster, imagem presente no livro 'Adeus, senhor Portugal' - Reprodução

Sim, o grande escritor se referia ao português falado no Novo Mundo. O texto traçava uma caricatura do "brasileiro", tipo ridículo de novo-rico —a princípio o retrato de um português bronco que tinha feito fortuna no Brasil e regressado, mas suficientemente ambíguo para que os brasileiros se vissem incluídos no quadro.

E se viram mesmo. Houve protestos, represálias contra portugueses radicados aqui, quase um incidente diplomático —o circo completo, porque as escaramuças vêm de longe. O artigo de Eça é notícia velha, mas dele ficou, agora com sinal positivo, o "português com açúcar". Por quê?

Será que o português brasileiro soa meloso a ouvidos lusos? Pode ser, mas a prosa literária portuguesa contemporânea tem tolerância bem maior a floreios poético-sentimentais —por aqui entretemos vícios de outra ordem, mas um certo sabor amargo vem predominando.

Quem sabe o "português com açúcar" seja uma referência histórica? Um dos principais produtos, ao lado do ouro com que a colônia sul-americana enriqueceu Portugal até o início do século 19, fruto do trabalho de escravizados, o açúcar teria de alguma forma deixado resíduos na língua falada na terra dos engenhos.

Se a contribuição dos povos trazidos à força da África, sobretudo os do grupo linguístico banto, foi de fato gigante na formação da nossa língua, o açúcar branquinho não é a associação que os estudiosos da matéria preferem.

A professora baiana Yeda Pessoa de Castro, maior autoridade brasileira em africanismos, deu o sugestivo título de "Camões com Dendê" (Topbooks) ao livro em que condensa os estudos de uma vida inteira.

O azeite de dendê, de origem africana, é levemente adocicado, mas é mais do que isso. Vermelho e denso, pode ser encontrado em uma série de pratos típicos da culinária afrobrasileira —salgados e, quase sempre, apimentados também.

Trabalhador colhe cacho de dendê em plantação no Pará - João Wainer - 24.nov.10/Folhapress

Fica então a proposta de atualização do clichê eciano: o português brasileiro não tem só açúcar, mas também dendê, sal, pimenta, alho, urucum, tucupi e cachaça, entre outros ingredientes ainda não devidamente catalogados.

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