Sílvia Corrêa

É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

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Sílvia Corrêa

Najila, Neymar e nossa capacidade de julgar em 30 segundos

Estudos mostram como nossas impressões surgem rápido e não necessariamente mudam

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A modelo que acusa o jogador Neymar de estupro apareceu em entrevista a uma emissora de TV. Najila Trindade tinha os cabelos presos, camiseta larga, pouquíssima maquiagem.

Se fosse a entrevista sobre a rotina dela como modelo, o visual certamente seria outro. Por quê? Será que nosso imaginário não aceita que uma mulher que surja diante das câmeras com longos cabelos loiros, soltos e esvoaçantes, maquiada, segura e bem vestida possa ter sido vítima de estupro?

Não me cabe avaliar se Najila refletiu na aparência um estado emocional ou se escolheu cuidadosamente o visual. Seja como for, ela evocou um estereótipo que vaga no imaginário social, segundo o qual é mais grave o estupro de uma mulher discreta e frágil do que o ataque a uma representante firme, poderosa e sexualmente livre do universo feminino.

A modelo Najila Trindade Mendes de Souza, que acusa o jogador Neymar de estupro
A modelo Najila Trindade Mendes de Souza, que acusa o jogador Neymar de estupro - SBT/Reprodução

Essa visão de mundo chegou a ser impressa no Código Penal, que até 2005 (sim! até anteontem!) previa punições mais duras para crimes sexuais contra uma “mulher honesta”.

Mulher honesta? E aí sobram textos de juristas tentando explicar o inexplicável: mulher honesta é aquela reconhecida pelos tribunais como de moral irrepreensível, que não rompeu com decência (seja lá o que isso for) e para a qual o sexo só é experimentado no casamento. Honesta ou reprimida?

Há 14 anos a expressão “mulher honesta” foi finalmente riscada da lei, mas o dia a dia não deixa dúvidas de que o (pre)conceito segue firme e forte dentro da cabeça de muita gente.

Najila admite na entrevista que tinha vontade de transar com Neymar, que procurou o jogador pelas redes sociais, que aceitou a viagem a Paris e que iria mesmo manter relações sexuais com ele. Mas aí diz que desistiu porque o jogador não tinha camisinha e, então, segundo a modelo, Neymar usou a força e manteve a relação sexual com ela.

Admitindo como verdadeira a versão da modelo (e essa é apenas uma hipótese), houve estupro. Porque não existe mais, caros senhores, a premissa de que uma mulher que admite estar disposta a transar com um desconhecido por prazer atenda aos requisitos de desonesta e, por isso, não pode mudar de ideia, já que nem a lei vai protegê-la.

O desejo sexual de Najila —fora do casamento, just for fun e capaz de fazê-la cruzar o oceano— felizmente já não autoriza ninguém a avançar o sinal nem ameniza crime nenhum.

Não me cabe defender Najila. Não tenho a menor ideia se ela está falando a verdade. Só quero chamar a atenção para o fato de que tendemos todos nós a tirar conclusões sobre esse caso a partir de conceitos prévios.

De um lado há um enorme universo de homens e mulheres (sim! mulheres!) para os quais Najila é certamente uma golpista desonesta (para não usar os adjetivos mais comuns nas redes sociais).

De outro, gente que não tem dúvida de que Neymar deve ser mesmo agressivo e desrespeitoso com as mulheres pelo simples fato de que o dinheiro e a fama facilitam o acesso a muitas delas.

Esse nosso comportamento está bem documentado pela ciência. Há alguns clássicos estudos, produzidos há quase três décadas, nos quais estudantes universitários foram expostos a rápidos vídeos dos professores com os quais teriam aula e convidados a qualificar a personalidade dos docentes.

Em menos de 30 segundos, os alunos tinham conclusões definitivas sobre as intenções, a honestidade e o caráter daqueles desconhecidos.*

É a força dos elementos da linguagem não verbal (roupas, gestos, movimentos) evocando nossos valores, nossas crenças, nossos preconceitos, nossas paixões.

Seis meses depois, os estudantes foram convidados a reavaliar os professores, agora, já conhecidos pelo grupo. E os resultados mostram que a avaliação semestral foi muito semelhante àquela breve impressão inicial.

A pergunta que fica é se somos tão bons assim em prever comportamentos por fragmentos de uma história ou se, de fato, temos uma enorme dificuldade de rever nossos açodados (pre)julgamentos.

Assim somos todos nós. Mas assim não deve ser a Justiça.

Neymar pode até acabar no banco dos réus, mas há muito mais em julgamento nessa história toda.

 
*Half a Minute: Predicting Teacher Evaluation From Thin Slices of Nonverbal Behavior and Physical Attractiveness, Journal of Personality and Social Psychology, v. 64, n. 3, p. 431-441, 1993

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