A mulher entrou calmamente no hospital veterinário. Cerca de 50 anos, cabelos presos, agasalho de corrida, bolsa de marca. Foi direto à recepção.
“Vocês vendem vacina?”, perguntou.
“A gente aplica. A senhora trouxe o animal?”, indagou a recepcionista.
“Não, não. É para a minha mãe. Eu quero, por favor, uma daquela contra o coronavírus.”
Sem saber direito o que responder, a recepcionista pediu licença e foi atrás de um médico-veterinário. Ele veio. E bem que tentou. Argumentou o que pôde. Deu quase uma aula de imunologia, mas não teve o menor sucesso.
“Não tem problema. Se vocês não querem vender, eu compro em outro lugar”, disse a mulher, finalizando a conversa, pisando fundo em direção ao carro e deixando para trás um rastro de silêncio.
Ela não é a única a acreditar nessa solução tão mágica quanto equivocada.
Nos últimos dias, um vídeo viralizou nos aplicativos de mensagens e nas redes sociais difundindo exatamente a ideia de que as vacinas usadas em cães podem impedir a infecção pela Covid-19, que seria um vírus antigo, segundo o autor da filmagem.
É fato que o selinho da vacina múltipla aplicada em cães diz lá: vacina contra cinomose, hepatite, adenovírus tipo 2, coronavírus, parainfluenza, parvovirose e leptospirose.
A questão é que existem vários tipos de coronavírus —mudam as proteínas da superfície entre eles, o que muda tudo, porque essas proteínas são a chave para eles entrarem nas células e se tornarem infectantes. E esse, ao qual se refere o selinho da vacina, é o coronavírus entérico canino (CCoV).
Essa vacina não protege nem os próprios cães contra o coronavírus respiratório canino (CRCoV) —que também existe, mas é diferente do vírus que está apavorando o mundo inteiro agora. Nem de longe, portanto, protege a gente!
Na verdade, é pior que isso, porque essas vacinas, apesar de largamente vendidas em todo o mundo, são consideradas não-recomendadas para os próprios cães pelas associações mundiais de clínicos de pequenos animais, mesmo contra o coronavírus entérico. Por quê? Porque não são eficientes nem para proteger os cachorros do agente intestinal ao qual supostamente se destinam.
O motivo é simples: o coronavírus entérico entra pela boca e fica restrito à mucosa intestinal do cão. Ele não faz viremia (não se espalha com o sangue). Portanto, para ser mais resistente a essa infecção, o cão tem que ter boas defesas lá na parede do intestino (são os anticorpos do tipo IgA). Mas, quando a gente aplica uma vacina subcutânea, o cão produz anticorpos dos tipos IgM e IgG, que pouco ajudarão a impedir que ele sofra uma infecção intestinal.
Isso tudo no organismo do cão. Na gente, além de não ajudarem em nada a prevenir a Covid-19, essas vacinas caninas vão fazer o organismo humano gastar energia montando uma resposta imune contra uma agressão que nunca virá —porque os vírus caninos não infectam o homem, já que não têm as proteínas de membrana adequadas para entrar nas nossas células.
Ou seja: tomar uma vacina desnecessária vai fazer, no mínimo, o nosso corpo gastar recursos de defesa, em vez de guardar munição para enfrentar uma ameaça muito mais real, a Covid-19.
Em tempo, talvez a lição a ser tirada dessa confusão é a necessária mudança das bulas e dos selinhos das vacinas caninas. Chegou a hora da indústria de medicamentos veterinários escrever no produto: vacina contra o coronavírus CCoV.
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