Sílvia Corrêa

É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

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Sílvia Corrêa
Descrição de chapéu Coronavírus

A tigresa do Bronx e a desinformação

Teste de PCR mostra que animal teve contato com Sars-CoV-2, mas não atesta que está doente

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Nadia, uma fêmea de tigre-malaio de quatro anos, tinha tosse seca e uma leve perda de apetite. Se fosse há alguns meses, poderia ser qualquer coisa. Mas, hoje, no meio da pandemia, no que você pensaria?

Foi no que pensaram os médicos-veterinários do zoológico do Bronx, em Nova York. Nadia foi testada para o Sars-CoV-2 (o vírus causador da Covid-19). E o resultado foi positivo.

Isso é fato. Mas os fatos não terminam aí.

Tigre
Nadia, tigre-malaio de quatro anos, testou positivo para o novo coronavírus - WCS/Reuters

Nadia foi submetida a um teste de PCR, uma técnica de biologia molecular que identifica a presença de um segmento de material genético de determinado agente —nesse caso, o Sars-CoV-2. Ou seja: tinha um rastro, um pedaço, uma parte desse coronavírus no corpo de Nadia.

“PCR positivo não significa que o vírus infeccioso esteja presente”, disse e repetiu o professor Edward Dubovi, da Universidade de Cornell, uma das três instituições onde foram feitos os testes que resultaram positivo. Mas a isso nem todo mundo deu muita atenção.

Neste momento, portanto, não se pode nem ter certeza de que a tosse e a perda de apetite de Nadia decorram de infecção pelo coronavírus.

“Ah, mas é pouco provável que seja outra doença?!”, dizem alguns. Talvez. Mas há outros aspectos pouco prováveis nessa história.

O zoológico divulgou que um tratador que estava com Covid-19, mas não apresentava sintomas, cuidou, no final do mês passado, de Nadia e de outros seis grandes felinos que também estão com leves problemas respiratórios. Isso significa que utensílios e alimentos possivelmente contaminados pelo Sars-CoV-2 entraram nas jaulas desses animais.

Considerando que, por questões de sobrevivência, um tigre e um tratador respeitam o preconizado distanciamento social, Nadia e os demais felinos teriam tido contato com uma carga viral considerada pequena e só por intermédio de fômites (superfícies que carregam o vírus), que eles teriam lambido ou cheirado. Na balança das probabilidades, seria pouco provável que todos adoecessem.

Para que se saiba se Nadia teve ou não Covid-19 é preciso fazer, ao menos, o isolamento viral, resultado que ainda não foi divulgado pelo zoológico.

Sem provas mais robustas da infecção, cairemos na tentação em que caíram os chineses, que inocularam enormes cargas virais no nariz de cinco gatos filhotes, eutanasiaram os animais e escreveram um suposto artigo científico dizendo que os bichos e um de seus vizinhos de gaiola tiveram exame positivo para Sars-CoV-2.

Foi um teste de PCR que resultou positivo! E agora você já sabe o que isso significa. Nos gatos filhotes, os pesquisadores inocularam o vírus. Seria esperado que algum rastro dele fosse identificado nesses animais.

Nos vizinhos de gaiola, o PCR foi positivo em um dos três gatos porque ele provavelmente teve contato com o vírus pelo ar, por fômites, por sei lá o que (porque o estudo é meio capenga, não esclarece algumas circunstâncias e ainda não foi aceito para publicação).

Mas nem os filhotes nem o vizinho de gaiola que teve teste positivo apresentaram manifestações clínicas da doença ou lesões que pudessem ser associadas ao vírus, inclusive no tecido pulmonar.

Há outros estudos que mostram alguma coisa, mas ainda não respondem o principal.

Em um deles, também ainda não aceito para publicação, outro grupo chinês achou alguns anticorpos contra o Sars-CoV-2 em gatos de rua de Wuhan, onde tudo começou, mas nenhum dos animais tinha sinais de doença. O estudo só atesta, portanto, que os gatos tiveram contato com o vírus, o que é esperado em uma pandemia.

No melhor dos estudos até agora, já aceito para publicação, dois ferrets foram infectados com altas cargas virais inoculadas pelo nariz e transmitiram o Sars-CoV-2 para outros dois animais que estavam na mesma gaiola. Todos tiveram febre, letargia e tosse, mas se recuperaram. Resta saber se isso aconteceria se eles recebessem cargas virais compatíveis com uma transmissão natural.

Portanto, considerando que ainda não sabemos nada sobre o Sars-CoV-2 e que estamos aprendendo no meio do furacão, o que se pode dizer neste momento é que não há comprovação de que os animais domésticos e selvagens possam adoecer do Sars-CoV-2 em condições naturais e, menos ainda, que possam transmitir o vírus para pessoas.

Estatisticamente, inclusive, a infecção de algumas espécies é pouco provável. Porque, considerando que os Estados Unidos, por exemplo, têm mais de 300 mil doentes humanos e que muitos deles têm animais de estimação, se cães e gatos fossem suscetíveis ao Sars-CoV-2, os casos já estariam explodindo nos hospitais veterinários.

*

Em tempo: como os animais têm de ser anestesiados para coleta de amostra, ainda não foi decidido se os outros seis felinos do Bronx serão testados para Sars-CoV-2. Nenhum deles teve sintomas graves e todos estão melhorando, segundo os últimos boletins sobre o caso.

Antes que você se indigne, o teste para detectar o coronavírus usado na tigresa não é o mesmo usado em humanos e ninguém ficou sem diagnóstico porque o animal foi testado.

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