Sílvia Corrêa

É jornalista e médica veterinária, com mestrado e residência pela Universidade de São Paulo.

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Sílvia Corrêa
Descrição de chapéu Coronavírus

Cães são treinados para farejar infectados por coronavírus

Pesquisadores de sete países começam a treinar animais para localizar, pelo cheiro, pacientes assintomáticos

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O odor exalado por pacientes diabéticos se assemelha ao que sentimos removendo o esmalte das unhas. Doentes hepáticos têm um certo hálito de peixe cru. A infecção por rubéola lembra o cheiro das penas das aves. E as doenças da bexiga —das bacterianas ao câncer— alteram o odor de urina.

As comparações foram feitas ao longo de quatro décadas pelo químico George Preti, professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia e talvez o maior pesquisador do significado funcional dos odores humanos.

Os estudos de Preti sustentam cientificamente o que defendia Hipócrates, o pai da medicina: o cheiro que exalamos é um biomarcador preciso da nossa condição de saúde física e emocional. Ele muda no estresse, no câncer, nas doenças endócrinas, degenerativas e nas infecções.

E aí, nesses tempos estranhos, a pergunta surge de forma quase imediata: e muda também com coranavírus? É essa a mais recente aposta dos pesquisadores.

As alterações do odor corporal de um doente acontecem porque o agente causador do distúrbio —seja ele um vírus, uma bactéria, ou um grupo de células neoplásicas— libera moléculas, que acabam carregadas para o ambiente externo pelo suor, a saliva, a urina e a respiração.

É o caso, por exemplo, dos carcinomas de pele. A análise do ar em torno de pacientes com esses tumores mostra que a concentração das substâncias é totalmente diferente da encontrada em volta da pele de indivíduos saudáveis.

Detectar essa alteração, portanto, pode ser uma forma de diagnóstico precoce de muitas doenças. No caso do câncer de pele, antes das manchas surgirem. Para o coronavírus, em pacientes assintomáticos.

O problema é que isso tudo é muito sutil. Essas moléculas sinalizadoras chegam ao ambiente em concentração muito baixa para serem percebidas pelo olfato humano. E aí entram em cena os cachorros.

De forma geral, nosso epitélio olfatório tem a possibilidade de identificar uma molécula se ela estiver presente em uma concentração de uma parte por mil —e, olha, que nem isso é para todo mundo. Os cães, com seis vezes mais células olfatórias do que nós, identificam essas moléculas na concentração de uma parte por trilhão —uma colher de chá de qualquer coisa diluída em muitas piscinas olímpicas.

Agora, pelo menos sete centros de pesquisa anunciaram quase simultaneamente o início de estudos que têm como objetivos treinar cães para detectar, pelo olfato, pacientes com coronavírus. Eles serão desenvolvidos no Canadá, na Alemanha, na Noruega, nos Emirados Árabes, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Cachorros na França são treinados para identificar o cheiro do novo coronavírus
Cachorros na França são treinados para identificar o cheiro do novo coronavírus - AFP

Na França, que promete resultados ainda para este mês, o estudo corre sob a coordenação da Escola de Veterinária de Alfort, em parceria com bombeiros das proximidades de Paris, e envolve oito cães já habituados a farejar vítimas em desabamentos, por exemplo.

No Reino Unido a pesquisa é comandada pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres e pela Universidade de Durham, com participação da ONG Medical Detection Dogs.

É o mesmo grupo que publicou um estudo no qual dois cães —o vira-lata Lexy e a labrador Sally— identificaram com 82% de precisão se as meias que farejavam tinham sido usadas por crianças infectadas ou não por malária. O índice supera a acurácia exigida para testes de malária pela Organização Mundial da Saúde. Nesse caso, o treinamento demorou seis meses.

A Medical Detection Dogs tem hoje 40 animais de detecção médica —muitos vivendo na casa de clientes. Eles foram treinados para identificar oscilações de glicemia em diabéticos, variações hormonais em doentes com insuficiência adrenal (síndrome de Addison), câncer e doença de Parkinson em estágios iniciais, além da presença de determinados ingredientes em refeições servidas a pessoas alérgicas.

Agora, a intenção dos pesquisadores britânicos é treinar seis cães —um golden, um labrador, um vira-lata e três cockers—, em até oito semanas, para colocá-los nos aeroportos do país e identificar passageiros com coronavírus, quando as medidas de isolamento forem relaxadas.

"As pessoas que estão chegando ao país podem ser assintomáticas", diz Claire Guest, presidente da Medical Detection Dogs. "Se nosso estudo der certo, em uma fração de segundo um cão pode indicar quem precisa ser testado, o que garante que os recursos limitados do sistema de saúde sejam usados onde realmente são necessários. Cada cão poderá examinar cerca de 750 pessoas por hora”, diz ela.

Ainda não se sabe se a Covid-19 tem um cheiro característico, mas como outras doenças respiratórias comprovadamente alteram nosso odor corporal, há uma boa chance de isso acontecer também com o coronavírus.

A norte-americana Michelle Gallagher, que estuda os odores dos carcinomas, já declarou que sonha com o dia em que terá uma espécie de "varinha de condão" contendo um nariz eletrônico.

Nos moldes do Tricorder médico de “Star Trek”, a varinha seria movimentada em volta do paciente e emitiria um som quando a varredura identificasse alguma doença.

Há muitas empresas de biotecnologia tentando desenvolver essas máquinas, sobretudo a partir do ar que exalamos.

Talvez elas cheguem logo, mas, infelizmente, não em tempo de combater o coronavírus nem de serem festejadas por George Preti.

Obcecado pela ideia da aplicação médica dos nossos odores, Preti morreu aos 75 anos, no último dia de 3 de março, de um câncer bexiga —um dos tumores silenciosos cujo diagnóstico precoce ele tentava farejar havia anos.

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