Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Descrição de chapéu Folhajus

Regimes autoritários sempre têm os seus juristas de estimação

Nunca houve ditaduras, colonialismo, escravidão e golpes de Estado sem esses teóricos

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A relação entre direito e democracia não é automática e nem necessária. Ainda que a ideia liberal de democracia se vincule à concepção de “Estado de Direito”, ou seja, de que a possibilidade de participação política e o gozo das liberdades devem ser garantias legais, um olhar atento sobre a história demonstra que nem sempre o direito e os juristas estiveram ao lado da liberdade e da democracia.

Para que esta questão seja mais bem compreendida, é preciso analisar o direito para além de sua dimensão ideológica. Falas em favor da democracia, da liberdade e da justiça repetidas à exaustão não nos apresentam uma outra dimensão fundamental do direito: a tecnológica. Com a ascensão das sociedades industriais as relações econômicas passam a demandar uma forma de subjetividade jurídica que perspectiva todas as dimensões da sociabilidade.

Exemplos de como os juristas são fundamentais para a estruturação de projetos de poder podem ser encontrados no livro “Os Juristas do Horror”, de Ingo Müller.

Na Alemanha dos anos 1930 as perseguições, a prisão e o assassinato de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, pessoas com deficiência e opositores do regime tiveram uma organização técnica e jurídica.

A institucionalização da ordem socioeconômica do nazismo contou com uma racionalidade jurídica cuidadosamente urdida. A destruição dos pactos da Constituição de Weimar, a produção de teorias jurídicas que pregavam a defesa da “pureza da raça” e a criação e aplicação das Leis de Nuremberg mostram que o nazismo não prescindiu de uma face jurídica.

A tessitura jurídica do poder nazifascista não foi criada por amadores ou incompetentes que desconheciam o direito. Foram juristas “respeitáveis”, professores importantes, “homens de bem” que colocaram toda sua inteligência e prestígio à disposição do regime. A construção do autoritarismo demanda alguma sofisticação já que é preciso casar ideologia e técnica.

Daí a importância de teorias e tecnologias jurídicas que institucionalizem a violência política, cuja forma racional são as leis, as decisões jurídicas e as formalidades processuais. A verdade é que nunca houve ditaduras, colonialismo, escravidão e golpes de Estado que não contassem com juristas de estimação.

Mesmo sob a égide de uma Constituição democrática, os efeitos de uma cultura antidemocrática, racista e dependente podem ser sentidos na atuação dos juristas. Como é possível que haja juristas racistas, sexistas e autoritários em países cujas leis apontam em uma direção democrática?

A resposta é que a mentalidade dos juristas não é totalmente conformada pelas leis ou pelo ensino jurídico. O juristas, assim como economistas, não pairam sob nuvens acima das disputas do mundo real, embora muitos acreditem que sim. Advogados, juízes, promotores e professores de direito são forjados por disputas políticas, por interesses econômicos e por práticas de poder.

Não são os senhores de sua própria casa. Há juristas realmente comprometidos com a democracia, disso não há dúvida; mas há aqueles que fazem de seu mister criar mistificações moralistas que se prestam a ocultar o papel do direito na estruturação técnica da morte.

Portanto, não é incomum que juristas, mesmo os que se dizem “liberais”, usem do prestígio, e às vezes do conhecimento que detêm, para dar guarida técnica e ideológica a medidas autoritárias. A corrosão das bases da democracia pela via do direito não precisa ser feita por meio de um ataque frontal às instituições, como nos golpes de Estado. Basta que juristas e instituições jurídicas: a) chancelem o fascismo sob pretexto da “liberdade de opinião”; b) calem-se ante a proliferação de práticas e discursos racistas; c) sejam coniventes com a violência estatal e seus incentivadores; d) omitam-se diante da flexibilização de direitos e garantias fundamentais; e) sustentem as formas de exploração e dominação social.

Por isso, não estranhemos a presença de juristas em tramoias antidemocráticas. O compromisso dos juristas com a democracia se mede pelo modo com que se posicionam.

Em tempos de ameaça aos princípios da República e à democracia, juristas verdadeiramente republicanos e democráticos não deveriam se esconder atrás de uma pretensa neutralidade. Por isso, são dignas de nota as iniciativas de juristas que se dispõem a enfrentar o autoritarismo.

Apenas para ficar em dois exemplos recentes, primeiramente destaco a criação da Tribuna de Juristas, projeto idealizado pelos professores Rose Naves e Plínio de Arruda Sampaio Jr. e pela jurista Kenarik Boujikian, que pretende debater a possível prática de crimes pelo atual presidente da República.

Assinalo também a importância da ação proposta junto ao Supremo Tribunal Federal por movimentos sociais e organizações não governamentais e que resultou na proibição de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Direito e politica são coisas distintas, mas imbricadas.

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