Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Descrição de chapéu Folhajus senado

Pode um tratado contra o racismo quebrar o pacto contra os negros?

Convenção aprovada pela Câmara poderá ser invocada para denunciar racismo perante órgãos internacionais

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No meio do caos, da violência e do negacionismo da questão racial, em muito estimulados pelo atual governo e suportados por parte da sociedade brasileira, a Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (9) o projeto de decreto legislativo 861 que ratifica o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. A sessão foi presidida por Orlando Silva (PC do B), um dos poucos deputados federais negros da casa.

A aprovação do projeto, ainda mais neste contexto, não pode ser considerada algo menor. Em primeiro lugar, pelo seu conteúdo, oriundo de propostas apresentadas em 2005 no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos). Posteriormente, em 2011, na Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, diversas propostas foram apresentadas até que, em junho de 2013, a convenção foi aprovada na 43ª sessão ordinária da OEA.

Mãe de Emily Victoria Silva dos Santos, 4, fala durante protesto após morte da menina em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense - Nicola Pamplona - 6.dez.2020/Folhapress

O Brasil teve papel fundamental na elaboração da convenção desde as primeiras negociações. Em 2015, o Poder Executivo, após assinatura, enviou o texto para a ratificação do Poder Legislativo a fim de que as normas ali contidas pudessem ser integradas ao ordenamento jurídico brasileiro. Em 2018, as comissões temáticas da Câmara dos Deputados aprovaram o texto da convenção.

Alguns pontos específicos dessa convenção internacional merecem destaque.

Em suas considerações iniciais, a convenção diz que seu objetivo é “combater a discriminação racial em todas as suas manifestações individuais, estruturais e institucionais”. Portanto, ao invés de reduzir o racismo à esfera individual e comportamental, a convenção reconhece o racismo como um processo, em que são criadas condições sistêmicas para a reprodução de práticas discriminatórias, posição sobre o tema que tenho defendido em livros e artigos.

Em seu artigo 5º, por sua vez, os Estados signatários se comprometem “a adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância”. Abrem-se as portas para que o Estado brasileiro e seus agentes sejam demandados na esfera política e judicial, caso se omitam em desenvolver iniciativas antidiscriminatórias e de promoção da igualdade racial.

Com a aprovação por mais de três quintos de deputados e senadores, e seguido o rito de dupla votação nas duas casas do Congresso Nacional, ao final, a convenção poderá ter status de emenda constitucional por força do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal.

Ao integrar o ordenamento jurídico brasileiro, a convenção poderá ser invocada para que o racismo institucional em nosso país possa ser denunciado perante os órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nesse caso, o Estado brasileiro pode ser responsabilizado pelas suas ações e omissões que tem vitimado cotidianamente a população negra.

Pouco antes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes completar mil dias, Emily e Rebeca, duas crianças negras, foram assassinadas enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias.

Não há nada a comemorar nesta semana. Temos, porém, um novo instrumento para seguir em luta.

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