Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Silvio Almeida
Descrição de chapéu Folhajus

A institucionalização do deboche

Declarações públicas perversas e irresponsáveis têm contribuído decisivamente para a degradação do país

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Tenho a impressão de que a única coisa que funciona plenamente no Brasil é o deboche. Não a piada e a tiração de sarro que podem ser —embora nem sempre sejam— formas de aliviar a dureza da vida. O deboche, especialmente o que grassa no país neste momento, é algo a que atribuo um sentido que vai além da zombaria, da galhofa e da caçoada.

O deboche que está normalizado na vida nacional é da ordem da perversidade. É um ódio ao riso e à alegria; é um gozar diante do choro alheio. Sente-se no hálito do debochado sempre um aroma de indecência e bandalheira.

Ao que se tem chamado de negacionismo denomino agora por deboche, porque considero um nome mais adequado ao nível de deterioração da sociedade brasileira.

Ser debochado, cruel, perverso, virou algo estética e —pasmem— eticamente aceitável. Nestes tempos, ser mal-educado e desprezível tornou-se “cool”, virou sinal de “inteligência”, de “coragem” de se opor ao “senso comum” e ao “politicamente correto”.

Mas não devemos nos enganar e achar que existem espaços onde o deboche não seja admitido. O deboche se tornou parte do inconsciente coletivo, da cultura brasileira, o que só está sendo possível porque a delinquência intelectual ganha a cada dia mais prestígio institucional, tanto no setor público como no setor privado.

O deboche inviabilizou aquilo que outrora se chamou de esfera pública, idealmente o lugar social em que a partir do debate racional se estabelecem as regras de ordenação da vida social e em que se dá a construção de parâmetros éticos e jurídicos da convivência. O deboche virou uma estátua.

Estas manifestações de indigência política não teriam capacidade de romper a capa de seus porta-vozes e se transformar em uma espécie de surto coletivo, com força suficiente para destruir a esfera pública, não fossem dois fatores fundamentais.

O primeiro fator é uma demanda por espetáculo, e isso está ligado à economia da atenção. O deboche tem materialidade e, portanto, vira dinheiro com os likes, visualizações e audiência que proporciona.

O segundo é que esse desejo de confusão, seja por motivos econômicos, seja por motivos políticos, encontra guarida no Estado, nas empresas de comunicação e até mesmo na universidade. O paradoxo é que essas instituições promovem a médio e longo prazo a sua própria destruição, à medida que o deboche é o radical oposto da democracia, da ciência e da busca pela verdade.

Dos inúmeros exemplos recentes da ascensão do deboche, um deles chama particularmente a atenção por conta do lugar em que se deu e pelo cargo ocupado pelo personagem envolvido.

Convocado a dar explicações na Câmara dos Deputados acerca das ameaças que proferiu contra membros do Senado, o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, afirmou com todas as letras que no Brasil não houve ditadura, mas um regime “forte”, em que houve “exceções” (sic) de ambos os lados.

Para além do uso equivocado da palavra “exceções” no lugar de “excessos” —o que parece ter sido um ato falho—, a declaração do ministro não pode ser tratada genericamente como negacionismo. Foi mais do que isso, foi deboche.

A fala mentirosa sobre o golpe de Estado e a ditadura tem a clara intenção de ofender, de polemizar, de marcar uma posição de confronto com aqueles que defendem a democracia.

O contexto da declaração (a Câmara dos Deputados), o governo ao qual serve e o fato de ter dito que se tivesse havido ditadura “muitos não estariam aqui” reforçam a crueldade e a intenção de agredir não somente o Congresso Nacional, mas o povo brasileiro. O que fica evidente é que a cultura do deboche precisa de palco e de circunstância para se disseminar. Então é preciso que paremos de dar luzes àqueles que promovem a destruição da esfera pública.

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