Solange Srour

Diretora de macroeconomia para o Brasil no UBS Global Wealth Management.

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No país do vale-tudo, nada vale

Quando o assunto é ampliar a proteção social, a proliferação de más ideias é acelerada

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​A crise passou a ser a justificativa perfeita para qualquer tipo de ideia, muitas das quais não ficam de pé diante de números.

Quando o assunto é a ampliação da proteção social, a proliferação de más ideias é acelerada. Já que abrimos espaço para aumentar os gastos durante a pandemia, qual o empecilho para estender o coronavoucher até dezembro? Por que não criar uma renda básica universal e acabar com o teto de gastos?

É curiosa a crença de alguns economistas de que avaliar a eficácia do gasto público, obedecer às restrições orçamentárias e estudar a evidência empírica soam como fetiche. O debate econômico está indo na mesma direção do da saúde, ignorando a ciência e repleto de devaneios.

Pessoas usando máscara fazem fila na frente de uma agência da Caixa Econômica Federal para sacar o auxílio emergencial
Em meio à pandemia, extensão do auxílio emergencial até dezembro e criação de uma renda básica universal entraram em debate - Havolene Valinhos/Folhapress

Muitos admitem que temos que nos preocupar com o tamanho do déficit e com a trajetória da dívida, mas não neste momento. É hora de atender aos mais atingidos pela crise, com mais transferências, repasses para a saúde e recursos para a educação.

Ideias soltas ao vento soam como música até esbarrarem na matemática. Se o fiscalismo imperasse no Brasil, não teríamos, de 2011 a 2019, uma piora de resultado primário de 3,7 pontos do PIB.

Cerca de 70% dessa piora se deu pelo crescimento da despesa primária, e mais de 90% se concentraram em programas de transferência de renda (BPC/Loas, seguro-desemprego, abono e Bolsa Família) e Previdência.

Se gastássemos pouco com educação, não teríamos a despesa real do Ministério da Educação crescendo em torno de 90% entre 2008 e 2017. Enquanto isso, o Pisa, programa que avalia a educação entre países, revela que 68% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem nível básico de matemática, o mínimo para o exercício pleno da cidadania.

Colocar a culpa da má alocação de recursos no teto de gastos é ignorar o que as pesquisas internacionais revelam. Não considerar que foi o teto que tornou possível a queda do risco Brasil, os juros baixos e um ambiente propício à retomada da economia é excluir da história recente o que não convém ao discurso do vale-tudo.

A crise é séria demais para desviar o foco do que realmente determinará nosso futuro: as mudanças estruturais que já estão em curso. Em vez de simplesmente tomar como inequívoca a expansão do já alto gasto social, por que não nos debruçamos sobre o real problema que enfrentaremos no mercado de trabalho?

Alterações induzidas pela pandemia nos arranjos de trabalho, nos padrões de gastos dos consumidores e nos processos produtivos não se reverterão e terão consequências duradouras no nível de emprego.

O uso extensivo do trabalho remoto, a digitalização e o avanço tecnológico tornarão necessária uma realocação da mão de obra, para a qual o país não está preparado. Com 50% dos trabalhadores na informalidade, que está concentrada nos mais pobres, o país não terá uma recuperação rápida.

O aumento estrutural do desemprego justifica uma agenda muito além da extensão dos programas de assistência social. Se o desemprego já ronda perto dos 20% (incluindo os que deixaram de procurar empregos em razão do isolamento), imagine como seria sem a liberalização da terceirização.

É preciso avançar mais. A MP do Trabalho Verde e Amarelo reduzia os custos de contratação de jovens em 34%, mas foi barrada no Congresso.

Gastamos quase nada em programas que aumentem a disponibilidade do capital físico e a produtividade dos trabalhadores. Regimes especiais de tributação, como o Simples, que não é proporcional à geração de renda, distorcem o investimento e a produção.

Avançamos pouco também na melhoria da regulação. A aprovação do marco legal do saneamento foi uma excelente notícia, apesar de estarmos mais de um século atrasados.

Antes de criar despesas, devemos fazer um debate sério da qualidade dos nossos gastos. Políticas que parecem fazer sentido a curto prazo, quando o ambiente internacional é de ampla liquidez, podem ser deletérias a longo prazo. O tamanho e a trajetória da dívida que teremos no fim desta crise importam, pois ela terá que ser paga.

Não custa lembrar que, antes da pandemia, o Brasil se arrastava, pagando caro por ter adotado propostas gêmeas das que estão sendo levantadas agora.

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