Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

Assistir a jogo com delay e 'previsão de futuro' beira o esotérico

Foi peculiar ver o jogo com a informação privilegiada da bola de cristal televisiva do meu pai

O placar ainda estava 3 a 2 para a França quando eu liguei para meus pais. Eu já sabia que havia um delay na transmissão, com o sinal por cabo chegando no Rio uns dois minutos antes do nosso chegar por streaming nos EUA. 

Também sabia que eles estariam vendo o jogo. Mas antes mesmo que eu pudesse avisar meu pai para que ele não fizesse o que tem fama na família de fazer —dar spoilers—, ele já atendeu dizendo: "Sussuuuu, você tá vendo, 4 a 2! Que goleada!". Saquinho...

Jogo entre Franca e Argentina, em Kazan, na Rússia, nas oitavas de final da Copa da Mundo de 2018
Jogo entre Franca e Argentina, em Kazan, na Rússia, nas oitavas de final da Copa da Mundo de 2018 - Li Ga/Xinhua

Foi peculiar assistir aos dois minutos seguintes do jogo com essa informação privilegiada da bola de cristal televisiva do meu pai e com a incerteza apenas de qual lance resultaria no novo gol. Assistir a replay de jogo no dia seguinte é como ver um filme baseado em fatos reais, mas a sensação de assistir a um jogo "ao vivo" cujos lances seguintes já foram definidos, com familiares predizendo o futuro, beira o esotérico.

Há quem diga que nosso futuro, como o desenlace de um jogo, já estaria determinado à revelia, pela combinação de biologia ao nascimento e circunstâncias ao longo da vida. 

Acho exagero; isso só seria o caso se vivêssemos, como eu ao telefone com meu pai, correndo atrás do bonde de uma vida já decorrida, decidida pelos outros ou pelos acontecimentos, apenas tomando ciência das cenas. Ao contrário: temos neurônios suficientes para registrar futuros possíveis a todo o instante, escolher o desejado, montar uma estratégia, e agir de acordo.

Justamente por isso cartomantes e outros praticantes da "leitura da sorte" têm tanto poder nas mãos. Sugestionar o cérebro é moleza: basta fazê-lo visualizar um futuro e aquela cena mental passa a influenciar nossas ações. Daí o poder das mandingas em voz alta, do tipo "Vai errar!". Daí, também, o poder de terapeutas, professores, pais e outras pessoas bem-intencionadas, mas maledicentes.
 

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