Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

O cérebro ainda ganha da tecnologia

Novas geringonças ainda não conseguem filtrar os sons como nós o fazemos

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Não faço parte do time que maldiz tecnologia, pelo contrário: tenho convicção de que uma das maiores conquistas do nosso monte de neurônios corticais é justamente esse corpo crescente de soluções, métodos, sistemas, objetos e artifícios de maneira geral que nos permitem resolver problemas mais rápido ou melhor, e deixam tempo livre para procurar novas atribulações.

Cedi recentemente à geringonça da vez que vem com uma câmera “inteligente”, com ângulo de visão amplo e que segue quem fala e se move pela sala, mantendo o foco da conversa no centro da tela. A visão mais natural do ambiente do outro lado e a imagem mais estável me seduziram: detesto falar para o nariz dos outros em close-up e movimentos erráticos na telinha do meu telefone. Meu filho então levou uma segunda geringonça de natal para meus pais, no Rio, e eu instalei a minha aqui no outro hemisfério, em Nashville.

Dispositivos inteligentes ainda não conseguem superar o poder de processamento do cérebro - Josh Edelson/AFP

Ah, que diferença faz conversar naturalmente com quem a gente gosta, vendo imagem limpa, estável e com contexto, acompanhando seus movimentos, ouvindo os comentários dos outros ao fundo. Um som estranho de algo raspando uma superfície surgia alto e claro de vez em quando —uma vassoura na cozinha, me dei conta. A inteligência da máquina filtra alguns sons e amplifica outros, fazendo o papel do cérebro da máquina do lado de lá, ouvindo o ambiente por mim. O algoritmo achou que a vassoura era relevante. Mas ainda dava para ignorar a intrusão.

Até que o resto da família apareceu para jogar cartas, comigo do outro lado da tela. Minha família é só normalmente barulhenta, mas tem o hábito que os fabricantes da geringonça pelo jeito não conhecem de interromper uns aos outros e falar ao mesmo tempo, o que eu cresci achando perfeitamente normal e animado —mas só porque o cérebro da gente sabe lidar com o problema. Nos círculos da neurofisiologia, o nome do problema é “festa coquetel”, mas se o pesquisador fosse brasileiro, seria “papo de família”: como separar em conversas paralelas as várias vozes sobrepostas, e escolher uma só para seguir em alto e bom tom?

A neurociência ainda não tem uma resposta completa, mas tem bons esboços para as várias partes da solução. Sabemos identificar vozes e separá-las umas das outras, casá-las com os lábios que se movem, filtrar e ignorar sons que não interessam, diminuir o volume mental de parte da sala, aumentar o som de quem fala nesta orelha e não na outra. Qualquer cérebro humano faz sozinho o que a tecnologia neste caso ainda tenta imitar —exceto a parte de estar em duas casas ao mesmo tempo.

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