Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

Doía e eu não sabia

Com sorte, a memória da dor não some, e promessas de não se deixar cair em situação semelhante têm chance de sucesso

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Dizem que a dor é psicológica: depende do estado mental. De fato, depende, e a tal ponto que é possível ignorá-la solenemente. Mas se há dor, é porque corpo ou mente foram rasgados, partidos, queimados, destruídos de alguma forma —e a dor está lá, seja ela sentida ou não.

Às vezes é porque o cérebro está mais ocupado com algo absolutamente urgente. No auge do estresse agudo, aquele problema imediato que precisa ser resolvido a-g-o-r-a, os sinais do estrago são bloqueados e não ganham acesso à atenção ou percepção consciente: o dano está feito, mas a sensação do estrago só se nota depois, quando passa o estresse. Acontece com atletas em plena competição, mas também com cidadãos comuns que absolutamente tem que terminar um trabalho, cumprir um prazo, ou garantir a segurança dos filhos.

Atleta americano Zach Galla sente dor durante prova na Copa do Mundo de Escalada
Atleta americano Zach Galla sente dor durante prova na Copa do Mundo de Escalada - Jeffrey Swinger/Reuters

Outras vezes, contudo, é porque a causa da dor não é resolvida, e passa a ser tão constante que o cérebro nem dá mais bola. Dia após dia, a sensação de dor vira o novo normal.

Porque assim é o cérebro: os neurônios que o compõem são maquininhas de detectar mudanças e variações, não constantes. Como, além disso, neurônios estão eternamente se recalibrando de acordo com a realidade da sua atividade, o que não muda ao longo do tempo se torna invisível ao cérebro conforme é incorporado à eternamente reajustada definição de "normal".

E assim a dor crônica deixa de ser registrada. As costas moídas, a solidão do lockdown, tudo continua lá —mas a vida segue. A gente se acostuma até com o que já foi intolerável.

Mas o motivo da dor se mantém lá.

Até que um dia —seja por acaso, epifania, inspiração divina, anti-inflamatório, fisioterapia ou esforço de cientistas que produzem vacinas em tempo recorde e o governo faz a sua parte de providenciar acesso e distribuição— a fonte da dor é debelada.

E a gente descobre que estava, esse tempo todo, segurando a respiração. Aguardando o impacto final. Funcionando em modo sobrevivência, tolerando a puxação do bandeide que segura as pontas da pele, aguentando a dor dos pontos que não deixam o corpo se rasgar e as entranhas saírem.

Até que o anti-inflamatório faz efeito. Abraçar nossos pais vacinados não é mais coloca-los em risco de morte. O bandeide é arrancado, e os pontos, removidos.

O cérebro respira, aliviado.

Doía, e a gente não sabia.

Com sorte, a memória da dor não vai embora, e nossas promessas de nunca mais se deixar cair em situação semelhante têm alguma chance de sucesso.

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