Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Médicos da América Latina são aplaudidos e hostilizados no cotidiano

'Se não for embora, mataremos sua mulher e filhos', escreveram vizinhos a colombiano

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Só a estupidez e a crueldade humanas podem explicar cenas como as que estão acontecendo em alguns lugares da América Latina durante a pandemia do coronavírus.

Nasceu na Europa, e chegou logo à região, o costume de aplaudir médicos e enfermeiras em determinado horário do dia. Em Buenos Aires, ocorre sempre às 21h. Por cerca de cinco minutos, ouve-se um barulho ensurdecedor saído dos apartamentos e das casas das pessoas que estão em quarentena. A cidade, adormecida durante o dia, parece mostrar nessa hora que toda sua vivacidade ainda existe, e sai à varanda ou à janela para um gesto de solidariedade.

Pois a mesma sociedade que aplaude é capaz de uma crueldade imensa, já registrada em lugares como Bogotá, Cidade do México e a própria Buenos Aires.

Moradores olham profissional de saúde a andar pela ruas de Cali, na Colômbia, para realizar testes de Covid-19 - Luis Robayo - 24.abr.2020 / AFP

"Doutor, se o senhor não for embora, mataremos sua mulher e seus filhos." Não, não se trata de uma ameaça de um grupo de narcotraficantes ou paramilitares. Mas de vizinhos de um médico que vive num bairro nobre do norte de Bogotá. O bilhete foi deixado na porta do apartamento do profissional. Nesse caso, as autoridades agiram rápido. Os responsáveis foram identificados pelas câmeras de segurança e estão sendo processados.

O medo de conviver com profissionais de saúde tomou forma de assédio também na Cidade do México, onde foram registrados pelo menos 12 ataques físicos ou verbais contra eles, na rua. Tanto que passou a ser uma orientação nos hospitais da rede pública que não exibam, em seu trajeto para o local de trabalho ou de volta para casa, nenhuma pista da profissão que exercem. Nada de se vestir de branco ou de deixar apetrechos à mostra.

Na Argentina, o caso mais famoso foi o do farmacêutico Fernando Gaitán, que chegou ao edifício em que mora, em Buenos Aires, e viu o seguinte bilhete: "Vá embora daqui porque vai nos contaminar a todos, seu filho da p...". Aos meios de comunicação, Gaitán contou que sentiu raiva, arrancou o bilhete e, depois, em casa, chorou.

A doutora Florencia Almirón, do hospital Gandulfo, na Grande Buenos Aires, afirmou que os médicos argentinos de hoje são "como os soldados das Malvinas nos anos 1980. Todos queriam que eles fossem à luta e morressem pela pátria, mas quando voltaram às suas casas, foram hostilizados".

É verdade que esses profissionais estão mais em contato com o vírus do que muitas pessoas, e também que estão mais expostos para contraí-lo. Especialmente na América Latina, onde a carência por material hospitalar adequado é maior. Na Argentina, 20% dos infectados são médicos ou enfermeiras. Só que os demais continuam na linha de frente do combate a essa terrível ameaça que enfrentamos. E precisamos deles.

É por isso que nada explica esse tratamento contra quem está colocando a vida em risco para enfrentar uma doença que, na América Latina, já atinge tanta gente. Vizinhos desses profissionais devem ter cautela, sim, mas também mostrar solidariedade, porque quem é que sabe o que é voltar de um plantão exausto e depois de ver tanta tragédia?

Que sigam os aplausos e que se calem os ignorantes e negacionistas que agridem os profissionais da saúde dessa forma.

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