Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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É preciso parar de tratar a relação China-EUA como uma nova Guerra Fria

Analogias ruins embaçam a visão e podem conduzir a caminhos errados

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É curioso que se volte a falar numa nova Guerra Fria justamente agora em que se comemoram os 30 anos da queda do Muro de Berlim. O Financial Times, por exemplo, publicou dezenas de textos com “nova Guerra Fria” e “Guerra Fria tecnológica” apenas neste ano, com alguns deles criticando as expressões.

Não há como negar, as tensões entre China e EUA crescem e atingem diferentes áreas. Existem diferenças políticas e ideológicas importantes entre eles e há um clima forte de desconfiança no ar. Mas isso não é o bastante para simplesmente tirar a poeira do conceito de Guerra Fria e aplicá-lo à dinâmica entre as potências do nosso tempo. 

Xi Jinping e Donald Trump participam de reunião bilateral
Xi Jinping e Donald Trump participam de reunião bilateral durante a cúpula do G20 em Osaka, no Japão - Brendan Smialowski - 29.jun.2019/AFP

Há mais motivos para isso, mas cito quatro:

1) a natureza da competição entre EUA e China é distinta da que existiu entre EUA e União Soviética. Hoje, a rivalidade é essencialmente econômica e tecnológica, ainda que, no pano de fundo, haja um componente ideológico e militar.

2) os vínculos econômicos entre EUA e União Soviética eram praticamente inexistentes. Por sua vez, EUA e China têm economias altamente interligadas. Um é o maior parceiro comercial do outro, simples assim. O comércio bilateral atingiu US$ 683 bilhões em 2018.

3) diferentemente da União Soviética, a China não está empenhada em exportar seu modelo político. Podem se orgulhar de servir de inspiração, mas não há o espírito missionário de fazer com que outros sigam a cartilha do socialismo que, enfatizam, é aplicado aqui com “características chinesas”.

4) ao contrário da dinâmica EUA-URSS, China e EUA não impõem ameaça existencial um ao outro. Não é necessário um sucumbir para o outro prosperar.

A expressão nova Guerra Fria precisa ser empregada com cautela, especialmente por formuladores de política. Analogias ruins embaçam a visão e podem conduzir a caminhos errados. 

Elas impõem um quadro analítico que deixa de fora o que é peculiar ao fenômeno estudado. As semelhanças são exageradas, e as diferenças, varridas para debaixo do tapete. 

Uma consequência nefasta da narrativa da nova Guerra Fria é a indução à ideia de que os demais países precisam tomar partido, escolher um lado. 

Rejeitar o argumento da nova Guerra Fria é importante para os demais, para que possam manter margem de manobra e mesmo tentar tirar proveito da rivalidade entre os grandes.

A quem interessa essa conversa de nova Guerra Fria? Aos mais linha-dura de ambos os lados, que enxergam o mundo como no século passado, que estão prontos para ver uma ameaça à segurança nacional em cada esquina. 

Nos EUA, são os que gostariam de reprisar o filme do bem contra o mal. São os que, sem admitir, acham que o divórcio das duas economias (o “decoupling”) poderia se prestar ao papel de novo Muro.

O risco é a narrativa de Guerra Fria se tornar uma profecia autorrealizável. Quanto mais os EUA tratarem a China como inimigo, mais ela se comportará como tal. 

Certamente estamos diante de uma situação de rivalidade estratégica, de competição entre grandes potências, que deve durar por muito tempo. 

Mas o futuro do relacionamento entre elas não precisa seguir a trajetória do passado. A dinâmica China-EUA não é a de Guerra Fria —precisamos parar de tratar como se fosse. 

A comparação pode lá ter seu charme, mas ela mais atrapalha do que ajuda.

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