Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tatiana Prazeres
Descrição de chapéu Coronavírus

A corrida pela vacina e o atalho de Putin

Dinheiro, prestígio e poder fazem Putin pegar desvio para chegar primeiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em 1957, em plena Guerra Fria, a União Soviética surpreendeu o mundo ao conseguir colocar o primeiro satélite artificial no espaço, o Sputnik.

A Rússia de hoje definitivamente não é a União Soviética dos seus tempos áureos. Mas bem que Vladimir Putin gostaria que fosse. Como um lembrete de que a capacidade do país não deve ser subestimada, Putin batizou de Sputnik V a vacina contra a Covid-19 produzida na Rússia.

De fato, a Rússia herdou da União Soviética conhecimentos científicos avançados. Perdeu muito desse ativo nas últimas décadas, mas não deve ser desprezada na corrida por uma vacina. Descobriu, por exemplo, uma vacina contra o ebola —que os russos alegam ser a melhor, enquanto a OMS entende serem necessários mais testes.

Ao mesmo tempo, a Rússia sofre de déficit de credibilidade e tem histórico de anúncios prematuros em matéria de avanços científicos. A vacina que prometeram contra a Aids nunca chegou.

Especificamente no caso da Sputnik V, a grande questão é que ninguém sabe se ela realmente é eficaz e segura. Isso porque a Rússia tratou suas pesquisas com pouca transparência e achou por bem, para ganhar tempo, desviar de padrões internacionais no desenvolvimento da vacina.

Uma mão usando uma luva azul segura dois vidros contendo a vacina desenvolvida pela Rússia. Não é possível ler o que está escrito nos rótulos
Técnico mostra as duas doses da vacina Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya - RDIF - 6.ago.2020/via AFP

Em 11 de agosto, quando anunciou a aprovação da Sputnik V, a Rússia não havia nem começado a chamada fase 3 do desenvolvimento de uma vacina, em que testes são feitos em milhares de pessoas antes da autorização final para uso. Ao invés disso, a imunização havia sido testada em apenas 76 indivíduos quando foi aprovada. Inclusive a filha de Putin, segundo ele.

Com sua popularidade em queda, o presidente russo precisa de boas notícias para o público interno, e uma vacina milagrosa contra a Covid-19 ajudaria muito. Uma “made in Russia”, ademais, permitiria a retomada da economia do país antes que em outras partes.

Os impactos da Sputnik V obviamente não se limitam à Rússia. Seu grande teste é fora do país. Um dos desafios é convencer os demais de que a vacina funciona —e vários países estão dispostos, literalmente, a pagar para ver.

Putin não hesitará, desde já, em fechar acordos para produzir e distribuir sua vacina mundo afora. O estado do Paraná já anunciou o início de uma colaboração com os russos. A Sputnik V, de fato, pode ser algo valiosíssimo no combate ao maior desafio global desde a Segunda Guerra Mundial.

Sua adoção internacional, ademais, tem potencial de gerar benefícios importantes para Putin. Se a vacina efetivamente funcionar enquanto outras patinam ou falham, talvez não haja nada mais eficaz para promover a Rússia no mundo e aumentar sua influência externa. Como resumiu o Eurasia Group, seria soft power numa seringa. Além de prestígio e poder, a descoberta significa recursos vultosos em licenciamento e vendas.

Mas a Sputnik V pode se revelar um desastre. Se não funcionar, fará com que pessoas se exponham a risco supondo estar imunizadas. Além disso, pode vir a revelar efeitos colaterais inaceitáveis. Adotada fora da Rússia, eventuais notícias ruins sobre a vacina não seriam facilmente escondidas. O que deveria ser sinal de força para a Rússia de Putin viraria prova de decadência.

A tríade dinheiro, prestígio e poder faz a aposta na vacina irresistível para Putin, como faria para muitos outros. Mas, para o russo, se isso exigir pegar um atalho fora do percurso definido pela ciência, a aposta ainda assim vale a pena.

A ver se o mundo se convence de que essa vacina repetirá o sucesso do Sputnik original. Uma coisa é certa, Putin joga o jogo e gosta do risco.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.