Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Descrição de chapéu Coronavírus

Quarentena chinesa é para valer, o resto é fichinha

Esforços de Pequim estão concentrados nos casos 'importados' de Covid-19

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A decisão era difícil. Ou a pandemia nos mantinha separados por vários meses a mais ou encarávamos 60 horas entre Florianópolis e Pequim, com uma criança de 2 anos e meio, para reunir a família e retomar a vida na China, num pacote em que a quarentena não era item opcional.

Depois de horas tensas entre máscaras, álcool em gel, burocracia e incertezas, encontramos o aeroporto de Pequim deserto. Poucas rotas seguem abertas. Circulavam no aeroporto alguns passageiros incautos e funcionários vestidos de astronauta.

Pessoas usam máscara dentro do aeroporto de Pequim por causa da pandemia
Pessoas usam máscara dentro do aeroporto de Pequim por causa da pandemia - Thomas Suen - 24.jul.20/Reuters

Numa China que combina aplicativos modernos e papelada à moda antiga, preenchemos formulários de todos os tipos. Depois do teste de Covid no aeroporto, fomos conduzidos para o hotel designado pelo governo chinês para que cumpríssemos a quarentena.

De nada havia valido o esforço para que nos autorizassem a fazer a quarentena isolados no nosso apartamento. O nosso comitê de vizinhança não nos concedeu a regalia.

Recuperando parte da influência dos tempos de Mao Tsé-tung, os comitês têm controlado as pessoas e assegurado o cumprimento das orientações do governo durante a pandemia. Não tendo convencido o comitê, a opção era nos resignarmos com as condições ou não vir.

Quarentena chinesa é para valer, o resto é fichinha. São 15 dias num quarto de hotel-alojamento. O quarto é literalmente lacrado, com faixas na porta, daquelas que isolam cenas de crime, servindo de lembrete do bloqueio. No nosso caso, claro, com um detalhe que mudava tudo: uma criança cheia de energia.

Uma dose preciosa de conforto emocional veio da babá do Alexandre. A Hong comprou 15 brinquedinhos e entregou no hotel, assegurando-nos uma novidade por dia. Deixou também na portaria uma caixa com itens de primeira necessidade, incluindo um panda de pelúcia, que ganhou um abraço apertado no reencontro com o pequeno.

Da janela do sétimo andar, víamos pessoas andando na rua sem máscaras, que deixaram de ser obrigatórias em Pequim há pouco. Aparentemente sem casos de transmissão local de Covid por mais de três semanas, os esforços dos chineses estão concentrados em evitar casos importados do vírus.

Lá pelo décimo dia, meu chefe me mandou uma mensagem simpática, querendo saber se estava tudo bem. Perguntou, casualmente, se eu havia deixado meu filho no Brasil. Sorri ao ler a mensagem.

Lembrei-me das duas ou três vezes em que, ao receber chineses na minha sala na universidade, fui questionada sobre a foto do bebê no porta-retrato. "Você deve sentir muitas saudades dele!" Eu, sorrindo sem graça: "Como assim?". Resposta: "Mas ele não ficou com seus pais no Brasil?".

Impressiono-me como na China de 2020 ainda é comum que as pessoas deixem os filhos nas suas cidades de origem, sob o cuidado dos avós, até atingirem idade escolar.

É também comum que filhos com condições financeiras tragam os pais do interior para ajudar com os netos pequenos, mas isso não ocorreu aos meus colegas.

Todos os dias, Alexandre abria uma malinha de plástico que ganhara no avião. Ajeitava nela os brinquedos miúdos e dizia: "Vamos para a China, mamãe!". Para ele, tudo aquilo era uma longa conexão.

"Purgatório?", perguntei ao meu marido. Chegamos à conclusão de que depois não seria exatamente o paraíso —mas haveria luz no fim do túnel, com amigos na escola e parquinhos abertos.

No 14º dia, astronautas entraram no nosso quarto para um último exame de Covid. No dia seguinte, liberados, juntamos as trouxas para ir para casa —ou melhor, para andar na rua.

Chegamos ao 15º dia da escala mais longa de nossas vidas. Olho o calendário improvisado, véspera de 7 de setembro. Independência. Finalmente.​

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