Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Tatiana Prazeres
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China

Glorificação do trabalho na China combina ambições pessoais e endosso do Estado

Cultura inclui elementos do confucionismo, resistência a adversidades e sacrifício pessoal

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Você está ocupado? Ni mang ma? Esse era o tema do capítulo 2 do meu primeiro livro de mandarim. Fiquei me perguntando o porquê de aprender isso antes de saber dizer bom dia, boa noite, meu nome é fulano, sou de tal país.

Mas não, de acordo com o manual, antes convinha perguntar se a outra pessoa estava muito ocupada. Do capítulo 1, tinha aprendido basicamente a dizer olá, nihao. Imediatamente depois: “Você está muito ocupado?”.

Pois aquilo tinha razão de ser, revelava um traço cultural importante que aos poucos fui percebendo. A valorização do trabalho duro na China e a glorificação de longas jornadas são muito enraizadas no país.

Funcionários trabalham em linha de montagem de baterias de lítio na cidade de Yichang, na província de Hubei, na China
Funcionários trabalham em linha de montagem de baterias de lítio na cidade de Yichang, na província de Hubei, na China - 28.mai.19/Reuters

A cultura do trabalho aqui combina elementos do confucionismo, como dedicação, capacidade de resistir às adversidades e sacrifício pessoal. Segundo um ditado antigo, os céus recompensam os diligentes.

Essa lógica encontra terreno fértil na dita era da ambição que vive a China, na qual há um mundo de oportunidades, mas a corrida pelo dinheiro encontra competição extremamente acirrada.

Para completar, a valorização do trabalho e a busca por melhores condições de vida têm as bênçãos do Partido Comunista. Enriquecer é glorioso, teria dito Deng Xiaoping.

A relação dos indivíduos com a família e com a sociedade contribui para essa ética do trabalho. Os pais se sacrificam pela educação dos filhos e têm expectativas altas de que sejam bem-sucedidos.

A sociedade espera que a geração seguinte tenha uma vida mais confortável que a anterior. Essa sequência de gerações materialmente melhores é algo constante na China dos últimos 40 anos —e aumenta a pressão para que os jovens trabalhem duro, o que, ademais, é motivo de orgulho para a família.

No setor de tecnologia, por exemplo, é visto como normal o regime de trabalho 996 —das 9h da manhã às 9h da noite, 6 dias por semana. A piada com fundo de verdade é que a jornada, na verdade, é do tipo 007 —de zero hora de um dia até zero hora do seguinte, todos os dias.

De longe, pode-se ter a impressão de que a legislação trabalhista mais flexível ou a dificuldade de questionar condições de trabalho explique tudo.

De perto, e mesmo assumindo o risco da generalização, é impossível desconsiderar a importância da ética do trabalho na China, ignorar como aspectos culturais e sociais moldam a maneira como os chineses veem o trabalho e a corrida pelo sucesso.

Lembro o dia em que assinei meu contrato de trabalho em Pequim. Logo após os papéis, fui convidada a tomar chá com uma autoridade da universidade. Depois de amenidades, fui perguntada se eu teria algum problema em trabalhar aos finais de semana.
Saí do chá pensativa, o contrato recém-assinado não tinha nada sobre aquilo. ​

Mais de um ano depois, com um número razoável de domingos tomados por atividades acadêmicas, perguntei a um colega, afinal, por que sempre fazer esses seminários nos fins de semana.

O sujeito se surpreendeu com a pergunta por ser óbvia a resposta: durante a semana nós trabalhamos, ora. Estamos muito ocupados. Hen mang! Só aí entendi uma das lições básicas do meu curso de chinês.

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