Alheio às transformações da sociedade na China, o idioma do país embute estereótipos de gênero que a nova geração busca superar. É bem possível que todos os idiomas contenham uma dose de sexismo. Nisso, o mandarim e outras línguas se aproximam.
No entanto, diferentemente de idiomas ocidentais, o viés de gênero em mandarim às vezes se revela na escrita, sem que haja qualquer sinal dele na linguagem oral. Para perceber a sutileza, não basta falar chinês. É necessário saber ler, conhecer os ideogramas —algo muito mais complicado.
Explico rapidamente. A maioria dos ideogramas contém radicais, que, por sua vez, costumam dar indícios do significado do ideograma. O radical para “mulher” é encontrado, por exemplo, nos ideogramas para “irmã”, “tia” e “ela”.
Menos óbvio, porém, é que o ideograma para “bom” ou “bem” contenham esse mesmo radical de mulher.
Neste caso, o radical acompanha o ideograma para “criança”. O resultado é que o ideograma para “bem” ou “bom” é formado justamente por uma mulher e uma criança juntas. Por sua vez, o ideograma para “segurança” contém uma mulher debaixo de um telhado. Em casa, decerto.
Ironicamente, a expressão para igualdade de gênero traz a combinação dos ideogramas para homem e para mulher —nessa sequência. Inverta a ordem e um chinês enxergará imediatamente um erro.
O idioma revela traço cultural forte, mas claramente não reflete a situação das mulheres na China de hoje. Há uma evidente tensão entre a vida moderna e, por outro lado, os estereótipos sexistas e os valores tradicionais embutidos, por exemplo, na linguagem.
Para referir-se ao Dia Internacional da Mulher, costumava-se utilizar um ideograma que combina mulher e vassoura. Cada vez mais os chineses usam uma expressão distinta para que a alusão à data festiva dispense a vassoura.
Numa sociedade altamente competitiva, casar e ter filhos é algo visto por muitas mulheres como um peso, uma imposição do passado incompatível com as ambições do presente.
Com a pressão demográfica subindo rapidamente, o governo diminuiu a idade legal para casamentos, flexibilizou a política do filho único e alterou a legislação para conter os ditos divórcios impulsivos.
Nada disso tem produzido os efeitos desejados. Em 2020, o número de nascimentos caiu pelo quarto ano consecutivo. A taxa de divórcio, que aumenta desde 2003, bateu recorde no ano passado, quando ainda houve nova queda no número de casamentos.
Como resultado de décadas de políticas de planejamento familiar, mulheres urbanas na faixa dos 20 aos 40 anos são, em sua grande maioria, filhas únicas. Uma delas me diz que ter sido filha única foi-lhe uma grande sorte. Se tivesse tido um irmão homem, possivelmente teria ficado em segundo plano.
Mulheres como ela, num ambiente de competição acirrada, receberam toda a dedicação dos pais, desejosos de oferecer à nova geração oportunidades que eles mesmos não tiveram. Hoje, muitas se veem como bem-sucedidas.
Vivendo um período em que as possibilidades são amplas, essas mulheres pensam duas vezes —ou muitas vezes— antes de amarrar seu futuro a um marido e, na China, à família de um marido, com expectativas muito diferentes das suas.
Pressão social e interesses do governo empurram as mulheres numa direção, mas são cada vez mais numerosas as que querem avançar no sentido oposto. Para elas, o bom não envolve necessariamente a combinação de uma mulher e uma criança.
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