Era uma vez um relacionamento promissor entre o big tech chinês e o mercado financeiro americano.
A história já dura muitos anos, num arranjo lucrativo para ambos os lados. Empresas chinesas abrem capital nos EUA e assim ganham musculatura financeira para crescer. Investidores americanos enxergam nessas companhias boas oportunidades de retorno.
Um dos momentos emblemáticos da lua de mel foi a abertura de capital do Alibaba na bolsa de Nova York, em 2014, o maior IPO da história à época, tendo levantado US$ 25 bilhões.
Sete anos depois, podemos estar diante do ponto de inflexão dessa história, que já havia sido estremecida com o cancelamento às pressas do IPO do Ant Group no ano passado. O episódio agora envolve a Didi, gigante chinês de transporte por aplicativo, que acaba de abrir capital na bolsa americana. Captou US$ 4,4 bilhões —o maior IPO de uma empresa chinesa nos EUA desde o Alibaba.
Eis que, poucos dias depois da estreia, autoridades chinesas anunciaram a abertura de investigação de cibersegurança e segurança nacional contra a empresa. A Didi foi proibida de agregar novos usuários à sua plataforma. Seu app sumiu de lojas de aplicativos. Consequência: as ações da Didi derreteram nas mãos dos investidores americanos que haviam acabado de adquiri-las.
Serão investigadas também outras duas empresas chinesas de tecnologia recém-listadas nos EUA. Mais importante, Pequim estaria revisando as regras, em vigor desde 1994, relativas à abertura de capital de empresas chinesas no exterior. De olho nas empresas de tecnologia.
Não é de hoje que a China busca exercer maior controle sobre as companhias do setor. Mas o que se seguiu ao IPO da Didi indica algo novo. O movimento revela um olhar diferente sobre a atuação internacional dessas empresas e, em particular, sobre a presença delas no mercado financeiro americano.
Com a capitalização nos EUA, empresas chinesas passam a se submeter a regras e jurisdição americanas. Além disso, com mais recursos no exterior, uma firma de origem chinesa tem mais liberdade para ampliar seus investimentos fora da China, contornando a vigilância rigorosa e autorizações de praxe.
Essas consequências não são novidade. Os tempos é que mudaram. Nesse ambiente de tensões crescentes, Pequim tem interesse maior em manter o controle. Além disso, sanções econômicas contra a China se proliferam nos EUA. É difícil para os chineses aceitarem que empresas do país, porque listadas em Nova York, tenham que cumprir inclusive a legislação anti-China dos americanos.
Nesse contexto, a proteção de dados ganha destaque entre as preocupações chinesas. O big tech chinês acumula uma quantidade fabulosa de informações, inclusive dados pessoais de cidadãos chineses.
Quanto maior a capitalização estrangeira de empresas chinesas, menos controle Pequim tem sobre elas. No caso do big tech, que combina tecnologia e dados, o assunto é especialmente sensível.
Claro, não é apenas a China que está preocupada com a presença de suas empresas na bolsa americana. Os EUA não gostam da ideia de que seu mercado financeiro esteja vitaminando companhias do país visto como rival estratégico. Volta e meia ameaçam excluir firmas chinesas da bolsa americana.
O episódio Didi alimenta o ímpeto, nos EUA, por mais escrutínio sobre atuação de empresas chinesas. A seguir a lógica em marcha, muito em breve será impossível para uma companhia cumprir a legislação de um país sem, ao mesmo tempo, estar descumprindo a legislação do outro.
A simbiose entre o big tech chinês e investidores americanos está azedando —apesar do interesse das partes. Pequim e Washington é que estão mudando de ideia. Com o episódio da Didi, a China deu sua contribuição para algo que sempre quis evitar: o divórcio tecnológico.
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