Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Tatiana Prazeres
Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Comércio internacional não será o mesmo com as angústias da guerra na Ucrânia

Disputa civilizada entre Moscou e Kiev em 2016 foi prenúncio da securitização do setor

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Rússia e Ucrânia enfrentaram-se numa disputa comercial na Organização Mundial do Comércio (OMC) entre 2016 e 2019. Lembro-me perfeitamente: todos os sensatos queriam evitar aquele contencioso, visto como politicamente explosivo para uma organização que, afinal, não tinha sido criada para lidar com questões de segurança nacional.

Por décadas, comércio e segurança foram tratados de forma separada. A OMC nunca tinha se visto forçada a dizer o que os países poderiam ou não fazer em nome de sua segurança.

Kiev alegava que seus interesses comerciais estavam sendo prejudicados (e estavam mesmo) porque a Rússia dificultava o trânsito de mercadorias por seu território quando eram destinadas de outro país para a Ucrânia. Moscou alegava agir por motivos de segurança nacional e, na sua visão, esse argumento permitia-lhe fazer o que bem entender.

Policiais ucranianos ajudam voluntários a descarregar ajuda humanitária em estação de trem de Kiev - Dimitar Dilkoff - 3.mar.22/AFP

Ironicamente, os EUA apoiaram a Rússia nessa disputa contra a Ucrânia. Washington tomou partido dos russos porque tinha interesse, tal como Moscou, em usar o argumento de segurança nacional para livremente descumprir regras comerciais.

Especialmente sob Donald Trump, barreiras comerciais de legalidade duvidosa passaram a ser apresentadas sob essa justificativa. O então presidente dizia ser tudo um problema de segurança nacional —inclusive o fato de haver muitos carros alemães na Quinta Avenida.

Tal como os russos, os americanos defendiam a posição de que a mera alegação de segurança nacional bastava para que o "tribunal" da OMC não pudesse se manifestar sobre uma questão comercial. Brasil, União Europeia, China e outros discordavam do argumento.

Ao final, a Rússia ganhou a disputa —mas não prevaleceu a tese de que bastaria invocar segurança nacional para desrespeitar regras comerciais defendida por Moscou e Washington. O caso foi ganho a partir do exame dos elementos concretos do problema.

A disputa comercial iniciada em 2016 era um prenúncio da importância crescente que questões de segurança nacional viriam a ganhar nas relações internacionais.

A invasão da Ucrânia colocará fim, de vez, à visão típica do pós-Guerra Fria de que seria possível isolar preocupações de segurança internacional e concentrar esforços na agenda econômica, permitindo, diante da relativa estabilidade do cenário global, a otimização da produção e o entrelaçamento das economias.

Fica para trás o entusiasmo coletivo pela cooperação econômica, pelo direito internacional, pela crença kantiana de que o comércio serve à causa da paz mundial —o que marcou a criação da OMC em 1995.

A securitização do comércio internacional ganhou ímpeto com a pandemia, em função da sensação de vulnerabilidade associada à escassez de insumos críticos e à dependência excessiva de alguns países fornecedores. Mas também cresceu com a percepção, nos EUA, de que a ascensão da China constitui uma ameaça.

Com a guerra na Ucrânia, angústias dessa natureza apenas aumentam, repercutindo nas escolhas de política comercial mundo afora —não apenas em matéria de gás ou fertilizantes russos.

Adquirem nova importância preocupações com autossuficiência em setores estratégicos e com resiliência de cadeias de valor diante de desafios geopolíticos. Ganha impulso extra a visão de que é necessário diminuir a dependência externa em setores como semicondutores, terras-raras, ingredientes farmacêuticos ativos, além de energia e alimentos.

A agenda de segurança vai carcomendo a percepção sobre os benefícios do comércio internacional. A política se sobrepõe à economia —e, em muitas partes, o comércio internacional deixa de ser visto primordialmente pelas oportunidades que representa e cada vez mais pelos riscos de segurança que embute.

Antecipada pela outra disputa, civilizada, entre Rússia e Ucrânia na OMC, a securitização das relações comerciais é sinal claro de uma mudança de era.

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