Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Tatiana Prazeres
Descrição de chapéu China

Conhecer melhor a China requer estudo e sobriedade

Beatles, Revolução Francesa ou mesmo Jesus Cristo não dizem praticamente nada para os chineses

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Em setembro de 2019, a caminho da estação de metrô Jintaixizhao, em Pequim, recebi uma ligação inusitada da Folha: um editor tentava me convencer a escrever uma coluna semanal sobre China para o jornal. Naquele instante, enquanto caminhava, ouvia e observava meu entorno, passei a enxergar a cidade, o país e as pessoas com outros olhos.

O exercício de escrever regularmente —de entender e ao mesmo tempo explicar— mudou minha experiência na China. Obrigou-me a ler compulsivamente, ser mais curiosa, trocar impressões e testar ideias. Estimulada pelo ofício, tive ótimas conversas com chineses: quão confucionista é a China de hoje? O que acham dos seus bilionários? O que faz os jovens se interessarem em ingressar no Partido Comunista? Hoje, ao me despedir dos leitores para tomar novos rumos, reflito sobre a experiência.

Garota segura bandeira da China em parque em Pequim
Garota segura bandeira da China em parque em Pequim - Wang Zhao - 22.set.17/AFP

Conhecer a China requer humildade. Trata-se de algo colossal como objeto de estudo. Quanto mais leio, mais desconfio dos que se apresentam como especialistas em China. Pode-se conhecer a cultura chinesa (e olhe lá) ou um determinado período dos milhares de anos de história ou a situação econômica do país.

Dada a diferença entre o nosso repertório histórico e cultural e o dos chineses, a necessidade de encarar o desafio com humildade é ainda maior. Lembro que, perto do local onde eu trabalhava, havia uma árvore de Natal que resistia ao passar dos meses. Lá por meados do ano, não me contive e perguntei se eles não iriam recolhê-la. A resposta foi: mas ela é tão bonita, por que tirá-la daí?

A influência da cultura ocidental é muito limitada na China (ou, como dizem os mais ácidos, a China não foi colonizada culturalmente). Os Beatles, a Revolução Francesa ou mesmo Jesus Cristo não dizem praticamente nada aos chineses. Meu ponto aqui é: o inverso obviamente é verdadeiro. À exceção de Confúcio e Mao, os nomes dos heróis e de ídolos chineses não significam nada para nós.

As referências históricas de lá não ecoam aqui. Lembro o meu espanto ao aprender sobre a Revolução Taiping, na China do século 19, em que morreram mais pessoas do que em toda a Primeira Guerra Mundial. Ser um bom observador de China, um "China watcher", já é uma ambição e tanto, acreditem.

Mesmo reconhecendo a dificuldade, devo dizer que o desconhecimento sobre a China no Brasil e no mundo é absolutamente incompatível com a importância do país asiático. E, mais, a cobertura sobre a China com frequência privilegia a exotização do país —aquilo que é esquisito é o que gera notícia (árvore de Natal em agosto flerta com isso, reconheço). No entanto, esse viés da cobertura mais nos distancia do que nos aproxima da China que precisamos conhecer.

Falta sobriedade às análises. De largada, muitos tropeçam no risco básico —o de romantizar ou o de demonizar a China. Partindo de um ou outro não se produz nada útil. As opiniões se tornaram ainda mais apaixonadas após a pandemia. Percebi que o espaço para falar com equilíbrio foi se fechando. Ao ler a coluna, muitos leitores buscavam concluir se eu era pró ou contra a China —o que nunca foi o ponto.

Há de ser possível reconhecer o valor de uma iniciativa (o combate à pobreza, por exemplo) sem que isso seja percebido como endosso ao regime político do país. Igualmente importante, tem que ser possível criticar em paz, e o espaço para isso foi diminuindo também.

Assuntos sobre China não faltam. É o lugar onde as coisas estão acontecendo —essa era a sensação ao viver no país. Fecho o meu ciclo na Folha, mas segue longa a lista, no meu computador, de "ideias para colunas": cidades inteligentes, relações China-América Latina, regulação de algoritmos, internacionalização da moeda chinesa e por aí vai. O que acontece na China tem repercussões globais. Seguirei acompanhando esses temas todos, mas agora apenas consumindo notícias e análises. Ufa.

Com convicção redobrada depois de mais de 150 textos, concluo o último voltando ao que escrevi no primeiro: conhecer melhor a China é cada vez mais necessário para entender minimamente o mundo. Obrigada, Daigo Oliva, por aquele telefonema que mudou tudo.

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