Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Zona eleitoral

Minha mãe votava em uma escola pública antiga, lá pra depois de uma estação de metrô que uma senhora com loiro acinzentado do Shopping JK alcunharia de "Deus me livre!".

Ela já começava a se preparar dias antes pra "viagem". Era tortinha de aliche pra tia Cida recém-operada da catarata, bolo gelado de coco pra tia Amélia que há cinco anos lamentava ter tirado o "baço" e roupas usadas pra prima Silmara que "já foi tão bonita mas casou mal, coitada".

A dona Deusa não podia me ver que começavam os suores e arrotos. Eu estava sempre com "quebranto", e ela me benzia fazendo uso estridente de espasmos, bocejos e ânsias. Às vezes ela chorava enquanto apertava minha testa: "Tem uma menina loira na sua escola que te odeia". Me tornei uma pessoa com muito mais medo de "dia da eleição" do que de uruca brava.

Na rua em que todas essas pessoas maravilhosas moravam, residia também meu primo Pitchula. Um rapaz mirradinho, metido com tóxico (sorry, era como ele era conhecido) que tinha uns 30 anos mas aparentava 12. Pitchula adorava passar cera em seu carro vermelho, passear sem camisa com um cachorro gigante chamado Sidney e padecia de uma perversão muito específica: quando ninguém estava olhando ele me tacava, com força, um controle remoto na cabeça.

Sentia um orgulho imenso de entrar com minha mãe na cabininha e vê-la "votando", mas o patriotismo acabava aí. A sequência, com a longa rota familiar bizarra, me fazia ter vontade de crescer e me mudar correndo pra Suíça.

A última família que visitávamos era sempre a do tio Amadeu. O "parente rico". Dono de uma loja de lingerie na Penha, ele tinha muitos tapetes, muitos sofás, muitas taças de cristal, muitos filhos. Mas era a única casa em que ninguém servia sequer um copo de água da pia.

Minha mãe voltava sempre xingando: "Vai morrer seco, desgraçado, mão de vaca". E esse desabafo puxava muitos outros desencantos, e ela acabava por falar mal de toda uma grandiosa gama de humanos. Ninguém escapava de ser tarado ou ignorante ou falso. "Mas,se ninguém presta, por que a gente continua visitando tanta gente?" "Porque é família, minha filha." Se você está achando o clima dessas eleições muito bélico e confuso, não tem ideia do que era mamãe nos anos 80.

Quando tirei meu título de eleitor, eu já estava muito distante de todos. Metida, como diria alguma prima com unha decorada por florzinhas. Morava em Perdizes, estudava em Higienópolis e trabalhava no Itaim. Fiz questão de me libertar do clima de Natal familiar forçado a que eu era submetida em todas as eleições e votar, sozinha, numa escola particular de Pinheiros.

Na fila, pessoas educadas falavam muito pouco e muito baixo. Ninguém sequer olhou na minha cara. Estavam todos calmos e elegantes. Acho que esse foi um dos dias mais tristes da minha vida.

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