Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Se meu apartamento comesse

Herdei mais do que cinismo de cada amor. Do tiozão bem sucedido, nunca quis um real, mas observei de perto que profissional eu teria que me tornar pra envelhecer com laboratórios Fleury no plano médico.

Do bonito de doer, nunca cogitei fidelidade, mas aprendi a evitar carboidratos tal qual evito senhoras beijoqueiras no Natal. Com o alta rotatividade púbica, aprendi a importância carnal de se ter um apartamento bacana:

"Esse meu apê come gente sem eu precisar abrir a boca, meu". É que, se ele abrisse, estragava tudo.

Meu empreiteiro bem que avisou. "Logo mais você casa, tem filhos, e vai se arrepender de quebrar tantas paredes". E eu disse: "não". Eu (acho que) gritei, salivando de alegria e atitude jovial: "QUEBRA TUDO". Eu queria uma sala gigante.

Imaginei festas dissolutas, vizinhos chamando a polícia, conversas entorpecidas intercaladas por surubas, bitucas desmaiadas em plantas ressequidas por um ar pesado de luxúria e descaso com a integridade.

Nada disso aconteceu. Dois dias depois que me mudei, Pedro veio me visitar como amigo, trouxe um pendurador de bolsas em formato de meigos pássaros verdinhos e, desde então, mora aqui como senhor absoluto das minhas horas de lazer. Troquei galinhar por fazer frango sem hormônio ao vinho branco com batata rosti orgânica.

A tão sonhada hidromassagem, que seria palco de intensas performances aquáticas de prazer, virou um cantinho pro mozinho massagear as costas cansadas da labuta, enquanto eu lhe esfrego a casca do dedão direito com esfoliante. Às vezes, se não me engano, chego a cantar durante esse serviço.

O closet, desenhado para funcionar como um camarim de fantasias também físicas em busca de acolhimento profundo e frugal, tem bermudas suadas do mozão por cima de vestidos de seda, meias suadas em conchinha com calcinhas La Perla coleção fetiche extremo. Pedro corre no meu elíptico (adquirido por mim, a priori, para garantir uma bunda de solteira digna de amor) todos os dias e depois fica esgotado demais pra colocar suas roupinhas sujas pra lavar. Eu o ajudo.

O papel de parede alemão dos anos 70, escolhido para dar todo um aspecto laranja-pele-ardente e comunicativo para a sala, outro dia foi danificado. Pedro anotou
R$ 85,60 à lápis, pra lembrar o valor do cheque para o delivery do restaurante árabe.

O estudo de luzes indiretas que vão do hall até o quarto, plano mal intencionado de uma trintona voluptuosa, recentemente recebeu críticas: "Não dá pra ler direito uma porra de uma folha de jornal com essa iluminação de merda". É pra dar um climinha, eu expliquei. Ele soltou um arrotinho implosivo seguido de assopro (sim, cerveja).

Minha vida é um inferno, um saco, uma chatice sem fim e eu tenho muita saudade de tudo. Quero minhas gavetas de volta, quero mostrar "o resto da casa" pra sexuais jovenzinhos misteriosos e não pra esposas de primos. Quero retomar o controle total referente às guloseimas da despensa, o plano NET e a hora de dormir. Quero minhas almofadas de veludo vermelho (Pedro veta tudo o que lhe parece brega) e quero, sobretudo, sair correndo nua por Perdizes com a palavra LASCÍVIA escrita em batom Viva Glam da MAC na minha lombar.

Tudo isso posto, preciso ser sincera: nunca fui tão feliz.

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