Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Acho que eu te amo

As festas na minha rua lembram minhas enxaquecas. Antes da dor propriamente instaurada, sei que terei uma crise forte quando qualquer luz ou voz um pouco mais intensas me enojam secretamente, como assédios sutis. Antes da explosão inegável e do mal-estar palpável, o oxigênio já se apresenta como um fantasma gordo que insiste, pós-feijoada extrema, em fazer uma siesta demorada em minha nuca.

Ainda não estão formados os grupos que gritam, impondo a juventude como o único poder sem concorrência. Nós, adultos cansados de um dia de trabalho, muitas vezes calamos, com vergonha de ser mais inveja do que direito. Um misto de melancolia e respeito.

Mas o asfalto, velho e escuro nas minhas caminhadas com a cachorra no domingo de manhã, mas diamantado e lascivo nesses dias, me conta: prepare-se, que hoje tem. Os bares ainda estão vazios, mas, a uma quadra de distância, meu piso de madeira recém-lustrado reflete o sorriso dos funcionários ávidos por "caixinhas": prepare-se, hoje tem. Ainda nada atrapalha o trânsito, mas as pessoas já socam as buzinas, somando agressividade com um desejo involuntário de "percutir" o caos. Hoje tem. Os garotos ainda estão na aula, mas dá pra ouvir do meu banheiro o tique-taque de seus pulsos. Não demora nada.

Multiplique primeiro dia de aula da PUC com véspera de Carnaval. Às quatro da tarde, com previsão de durar a eternidade, eles chegaram. Do nono andar já dava pra sentir o cheiro de urina. Aê Cajuzeira!! Aê Drigueira! Aê Caju! Drigueeeeeira! Cajuuu! Dois imbecis decidiram conversar em looping grotesco e no volume mais alto imposto pelo fabricante de suas carcaças de plástico. Pensei em escarrar em suas cabeças sexuais, estourar um ovo orgânico sobre seus cabelos elétricos. Começou a chover e formulei algo de incontrolável caráter criminoso: LAVE-os daqui.

Onze da noite e meu ódio curtido por sete longas horas ganhou forma fantástica. Uma sombra de monstro ultrapassou meus pés e alcançou as paredes. Correu para o teto com caninos afiados, a voz sussurrante e firme da mente de um psicopata: faça alguma coisa. O Psiu não faz nada, a reitoria diz que é da porta pra fora e não tem controle. Batuque, grito. Caju e Drigueira. Urina. Faça alguma coisa AGORA.

De moletom, chinelo, cabelo preso e com a cara cheia de ácido clareador de manchas, me meti no meio da festa. A ideia era dizer a cada um: olha, pega essa sua pouca idade expansiva e estupidamente sonora, e enfia. Até você se autoimplodir numa inexistência espetacular.

Foi quando um garoto de uns 19 anos beliscou meu nervo lombar e perguntou que curso eu fazia. Eu disse: 36 anos, casada, só quero dormir. Ele respondeu: "Duvido, doida". E me girou. Os ossos da mão dele, assim como a naturalidade de sua afronta, eram feitos de uma consistência (há muito por mim) esquecida. Era como se eu pudesse quebrá-lo em mil pedaços que em poucos segundos ele se refaria, voltando a ser um garoto de 19 anos me rodopiando. Nenhum mal poderia interpelar sua magnífica sobreposição de vidinhas pulsantes. Cada centímetro da sua pele reluzia e me rodopiava. "Acho que eu te amo", ele disse. Sou de uma idade em que os homens só têm certeza. Sou de uma idade em que os homens só seguram em minhas mãos para compartilhar sinceridades frias, machucadas e desistentes. Por dois segundos cogitei beijá-lo, mas apenas voltei pra casa com câimbra no sorriso. Dormi pesado como uma adolescente bêbada, com as solas sujas.

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