Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Mr. GREYson

Era o finalzinho dos anos 90 e da ostentação "Mad Men", e a partir das seis da tarde rolavam bebidas e música alta. O dono, merecidamente celebridade, conversava com cada um e com ninguém. De mesa em mesa, falava rápido e apenas de si mesmo.

Eu via gente de 27 anos ganhando 30 paus por mês e pensava "caraca, nem sabia que essa quantia existia" e era impossível não me excitar com aquele mundo. Perdão, detratores FFLCH, mas uma crônica necessita mais de honestidade que de fofura.

Lembro da pressão do ar ser uma novidade no primeiro dia. A vertigem dava enjoos, mas também vontade de voar. Na zona leste, na companhia da minha família mezzo italiana ou cercada de amigos frutos de famílias mezzo italianas, falávamos muito, alto, gesticulando como afogados com fobia de água.

Na agência Marte, mesmo quando a casa caía, as mulheres continuavam refinadas, eretas e irritantemente bem vestidas –como só pessoas muito falsas ou muito criadas por mães frias poderiam. Eu ganhava R$ 550 e me achava o ser mais agraciado do cosmos, levava salada num tupperware e algo como "um arroz com frango pra dar sustância" em outro. Era insuportavelmente magra, deslumbrada e feliz.

Eu tinha um namorado de Valinhos residente em urologia (ele pegava em pau de mendigo toda sexta: zero glamour), que dividia um flat de 40 m² em Moema com colegas mais fritados que rissole de boteco de beira de estrada. Quando disse que além dos R$ 550 eu havia sido promovida para mais R$ 7,80 por dia de ticket, ele sentiu sua masculinidade afrontada e, vingativo, passou a rachar até conta de pão de queijo.

No dia em que eu e o Valinhos terminamos (ele queria que eu saísse mais cedo do trabalho e passasse suas camisas) eu conheci o André. André foi mecânico, garçom e pintor. Agora era meu chefe, tinha 39 anos (21 anos mais velho que eu), muitos prêmios, alguns filhos, crises de enxaqueca chiquérrimas que o deixavam com um mau humor ultrassensual, madeixas grisalhas arrasadoras, 212 funcionários que não sabiam o que fazer para agradá-lo, uma sala de vidro com vista para a minha mesa, um gerente que vinha pessoalmente falar de aplicações e uma cobertura imensa nos Jardins. Perdão, detratores FFLCH, mas um homem que vence na vida equivale, no imaginário de uma mulher, a um herói imortal flambado em ouro com língua biônica.

Me apaixonei perdidamente quando ele me deu um belo esporro, elegante e sutil, durante uma reunião. Sou adepta confessa de uma espécie branda de sadomasoquismo mental (o que sempre achei cem vezes mais sexual do que o ato sexual em si): meu hipotálamo vibra mais com uma chicotada verbal inteligente do que com um modelo não irônico embebido em chocolate belga dormindo nu e entregue em minha cama.

Quando ele me buscou em casa com algo que parecia um caminhão interestelar e disse "vou te ensinar as boas coisas da vida", fiquei um bom tempo sem sonhar com moços de vinis do Caetano e pôsteres do Che Guevara (depois voltei infinitamente para eles: ainda são os melhores amantes).

A relação durou dois anos. Meu Mr. Grey tupiniquim não me açoitava ou amarrava, mas fazia pior: ficava dias sem me ligar, era o "melhor amigo" de uma infinidade de fêmeas dadivosas e enchia a boca pra dizer "refaça esse trabalho AGORA". Quem nunca viveu algo parecido?

A paixão nos maltrata, nos escraviza e, por alguma razão obscura, essa é uma das partes mais viciantes (eis o sucesso de um livro tão mal escrito, mas com uma premissa excelente). Hoje, com muita terapia e pouco colágeno, eu sei que eu estava muito mais fascinada em ser aquele homem poderoso do que em tê-lo.

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