Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

O cachorro reaça

Lênin, um lulu-da-pomerânia que foi comprado no shopping Higienópolis por R$ 12 mil, não consegue se conformar com seu destino. Seus pais, dois jovens intelectuais bem-nascidos eco hipsters, são de esquerda. Se ele pudesse, diria: "Vocês moram nesse apartamento com pé-direito altíssimo, pagam esse condomínio exorbitante, e, ao invés de promoverem intensas surubas regadas a pó e a vodka Ciroc, ficam lendo e comendo linhaça? Idiotas!".

Lênin tentou mostrar sua revolta mijando, quinzenalmente, na "Carta Capital". Dando patadas violentas no nobreak da Net, toda vez que seu dono entrava no DCM ou no Havana Connection. Acharam que era apenas carência, que ele queria brincar com o "jacarezinho com apito".

Ninguém naquela casa com sal marinho e couve congelada valoriza a opinião política de Lênin, o cachorro reaça. E ele só foi ficando mais enervado, cheio de coceiras, deixando bolotas de fezes pela casa.

Para acalmá-lo, pensaram num adestrador ativista, numa ração orgânica feita por ativistas, num hotelzinho pra cachorro cujos donos são ativistas e servem rações orgânicas, mas sempre que Lênin escuta "ativistas" ou "orgânico" ele se faz de morto e vai parar no petcare do Pacaembu (não se brinca com saúde!). Como Lênin adora! Ele apronta essa de propósito só pra ficar no meio daquela gente cheirosa, como diria sua jornalista preferida! Exame de sangue padrão laboratórios Fleury, ressonância padrão Einstein. Só doente Lênin consegue ter o atendimento VIP que "nasceu pra ter", então ele vive simulando enfermidades.

Indignado quando não ganha gravatinhas azuis pós-banho (seus irmãos, adotados por pais tão mais legais, até colares Swarovski e sapatinhos usam), Lênin puxa papo com Sapeca, um labrador gente boa, e defende a maioridade penal pra oito anos de idade. "Criança é um porre!". Mas Sapeca só chacoalha a cabeça, pensam que é otite, e lá vai ele aturar pomada com antibiótico. Se soubessem que era só lamento aos absurdos de Lênin...

Lênin, o cachorro que se pudesse iria até um cartório Vampré mudar de nome (queria se chamar Campeão ou Farofa), está tomando remédio pra tosse (só está tentando dizer "petraaaaalhas!"). Ele sabe que é um cachorro "da moda" e, por isso, fica fulo quando sua família insiste em tratá-lo como vira-lata. Enquanto não entenderem que ele só quer uma bandana da CBF (porque é contra a corrupção) e um passeio na Paulista, ele segue fazendo "potinhaço" na varanda quando a presidenta aparece na TV.

Seu ódio por cicloativistas é tão grande que Lênin chega a temer que a vacina da raiva não dê conta. Pessoas que gastam mais numa bicicleta do que o porteiro gastou num Corsa usado, mas se acham superiores (esses são pensamentos do cão).

Pessoas que se vestem inteiras de "outfit outlet de Miami" e saem por aí xingando os outros de "camisa polo com brasão" (pensamentos do cão again). Lênin só se acalma quando o taxista malufista amigo passa a mão na sua cabeça.

Certa feita, um desses "night bikers" estava nu (porque, se não bastasse tudo o que ele reivindicava, ele queria reivindicar a natureza de seu corpo oprimido pelo sistema). Lênin tentou matá-lo. Foi quando a coisa piorou muito. Lênin acabou internado. Seus pais são contra "dramas classe média", mas, pra não sacrificar o pequeno endiabrado, contrataram um especialista em psique animal. Diagnóstico: carência, os pais precisam ler menos e brincar mais com o jacarezinho com apito. Lênin, ao ouvir tamanha insensatez, cansado dessa merda toda, começou a bolinar oralmente seu próprio membro. Parou quando viu a cor vermelha.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.