Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O grande amor da minha vida

Encontrei ontem, no supermercado perto de casa, o grande amor da minha vida. Justamente por não ter muito a ver com amor, a maneira como amamos aos 20 anos é a que mais se parece com o grande amor da vida. O grande amor da vida não se parece nada com amor. Enquanto fazia de conta que escolhia um suco de uva orgânico, fiquei tentando achar a melhor e mais curta formulação para "o grande amor da vida não é amor". Em algum momento desisti de colocar isso num texto, achando um baita jogo de palavras enganador. Mas, como palavras enganadoras não deixam tanta tristeza e essas tinham deixado, assumi o risco de elas terem alguma importância.

Ele estava perguntando sobre pão sem glúten. Pra ele? Pra mulher? Pra filha? Meu Deus, a filha já deve ter uns 123 anos! Pensei exatamente isso: "A filha já deve ter uns cento e vinte e três anos". Considerei um universo inteiro congelado no tempo: eu jovem, ele jovem, a gente naquele flat que virou estacionamento. E só a filha dele envelhecendo cruel e despudoradamente. Eu tinha passado pela mesma situação "onde tem pão sem glúten?" havia menos de cinco minutos. Tinha escolhido o pão sem glúten com quinoa. Ele escolheu o sem glúten de mandioca. Por alguns segundos, me imaginei simulando uma trombada de carrinhos, gritando a piada: "Para tudo!! Você também virou o neurótico do pão sem glúten?" Mas, como isso não era uma piada e gritar é sempre ridículo, desisti. A verdade é que não se simula uma trombada de carrinhos de supermercado com alguém 15 anos depois.

Quando eu tinha 21 anos, ele tinha 43. Se eu tenho 36 agora... virge. Fiquei esperando ele vir falar comigo. Aquele papo de "quem diria hein", um misto de carinho com "apostador de cavalos". Fiquei com medo de ele passar a mão na minha cabeça, cheirando a bandejinha de peito de peru fatiado, e falar: "Quem diria hein, menina". Por favor, Diego, Diogo (Diego ou Diogo?), não faça isso. E não ache que esqueci seu nome, você foi o grande amor da minha vida, é só que... eu não lembro mais o nome de nada. Você deve estar pior ainda, né?

Depois do café da manhã, na hora do almoço e um pouco antes do jantar. Às vezes, a gente escapava à tarde também, pra se ver quatro vezes por dia. Hoje em dia eu transo por trimestre o que eu transava numa quinta-feira. Nunca mais a gente ama como ama quando se tem 20 anos. Não era amor, claro, mas eu nunca mais esqueci, um único dia da minha vida, aquilo que era. Depois eu voltava pra minha mãe "vou terminar com ele, juro" e ele voltava pra filha dele "vou te apresentar ela, juro". Esperei por dois anos, mas ele acabou me trocando por uma idosa de 33 anos. Uma anciã perebenta, flácida, de bengalas, de 33 anos. Hoje eu sou mais velha que essa personagem que por tantos anos me assombrou como a mulher mais caquética e decrépita do mundo. Será que ele ainda está com ela? Deu irmãos pra filha que agora tem 123 anos? Diogo, Diego, passei os últimos 15 anos me arrumando, todos os dias, pra te ver novamente. E te agradecer por todas as vezes que não fomos ao cinema, todas as vezes que não passeamos em um parque de mãos dadas ou passamos juntos o Natal. Ser proibida me fez mais feliz do que ser amada. Vou lá. Vou agora que ele está escolhendo geleia de morango sem açúcar ou espero a seção de iogurte sem lactose? Já reparou como a vida ficou insuportável?

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