Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

Free Caetano

Uma menina vai passear com a cachorra e lota a cara de protetor solar porque a noite passa ácido pra tirar as manchas de sol. Tá, e daí? Sobre domingo no Minhocão, com a cachorra, o namorado, o protetor, o ácido. Ele tava quieto esse dia, e ela sempre pensa "será?" quando ele está quieto. Mas ouviu de sua terapeuta "você quer um parceiro ou um 'entertainer'"? E daí? Você vê um pouco da sala e do quarto e da cozinha das pessoas. E alguns prédios são bonitos, apesar de tudo. Apesar "de tudo" é muita coisa e ao mesmo tempo nos libera pra sentir aos poucos. Você vê um ventilador, mas está frio, e uma embalagem de manteiga na janela, servindo de "porta escovinha de esfregar roupa" e isso te dá uma sensação gostosa de "estou fazendo algo poético".

Desculpa, mas não, tanta coisa acontecendo no mundo, diz o carrasco que mora dentro da minha cabeça. Você está em um jornal, lembra o que disseram aqueles blogs de estudantes de sociologia? Tanta coisa acontecendo no mundo e você fica escrevendo sobre uma menina que vai pra algum lugar fazer alguma coisa e sente alguma coisa? Você tem uma obrigação social aqui, disseram. A quem interessa sobre o que você quer escrever? Você tem que ter uma opinião profunda, apaixonada, violenta, inteligente e renovada sobre isso tudo que estão todos falando no Facebook. Mas eu não sinto nada profundo e muito menos apaixonado pelo Uber x táxi. Eu não tenho a menor ideia do que eu acho. Acho que eu acho que um país precisa proteger seus trabalhadores e ao mesmo tempo premiar os trabalhadores melhores. O problema é que o mundo está lotado demais, então todo dia que fazemos algo melhor, ferramos alguém. E isso é triste, mas a vida é muito mais complicada que blogs de estudantes de sociologia. E eu me formei em marketing, mas só consigo sentir alguma emoção política defendendo a esquerda, então parece que sou papo furado, mas eu sou o que dá pra ser. Às vezes "falo" como uma criança, eu sei. Posso escrever sobre uma menina que vai até algum lugar e sente alguma coisa? Não.

Você tem que dar sua opinião sobre "se o Cunha é filho do demônio ou do diabo". Mas eu senti algo tão bonito andando no Minhocão, queria falar sobre isso, sabia que em um dos apartamentos eu vi uma mulher amamentando? Então dá sua opinião sobre esse machismo escroto que fica excitado quando vê peito. Não posso, eu também fico excitada quando vejo peitos. Não fale isso, as feministas estudantes de sociologia vão te bater, lembra? Mas elas me batem porque estão sentindo raiva de uma mulher com uma coluna em jornal, e não porque eu não sou feminista. Porque eu sou superfeminista, mas uma feminista que assume que sente tesão em seios. Uma criança passou por mim, de patins, no Minhocão, e gritou: "Sai da frente, tia". E eu ri, mas a primeira coisa que eu fiz chegando em casa foi me olhar pelada e concluir que "tia é a puta que te pariu que ainda dou um caldo".

O veto ao reajuste dos aposentados, o show do Caetano, a ciclofaixa na periferia. Vai, escolhe. Ontem eu estava com uma enxaqueca terrível, só queria ficar quieta, negociando a questão "vou aturar a dor, porque não se deve tomar tanto remédio, mas pra que aturar a dor?" e o taxista queria muito falar sobre "era melhor com o Maluf". E eu quero agradar as pessoas e mostrar a elas que tenho opiniões sobre o que estão falando no Facebook, mas começou a tocar Caetano. E meu Deus, como canta lindamente. Se ele quer só cantar, apesar de tudo, que cante, porque é lindo demais.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.