Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Aleluia?

Peço perdão ao leitor que lê esta coluna fazendo seu desjejum, mas falarei de cocô. Ou melhor: da falta dele. Sim, é Natal, mas prometo que se você chegar até o final deste texto a mensagem é de amor. E, neste caso, do excesso dele.

Não acontecia desde 1988, mas tive uma forte constipação intestinal. Cinco dias sem ir ao banheiro. Até o terceiro, eu estava ignorando a pancinha maciça tornando tão óbvio e palpável meu mau funcionamento. Mas, a partir do quarto, uma rivalidade desumana me tomou. Eu sentia inveja profunda da minha cachorra a cada interrupção dela pelas ruas de Perdizes para reduzir-se. Por que, por Deus, era dado esse supremo poder em abundância a uma criatura que rosna para criancinhas, e a mim, que fui tão boazinha esse ano, ele era negado?

Na manhã do quinto dia, por pouco não pude mais guardar minha secura em segredo. Fui pega na cozinha, batendo no liquidificador um suco de mamão com ameixa com farelo de trigo com ameixa com óleo de gergelim com Activia de ameixa. Pedro quis saber o que levava uma garota amada pelos seus a se transformar numa mulher bomba e eu apenas sorri, como manda a cartilha do "manter mistérios no casamento para uma vida sexual contínua e saudável" e respondi, muito feminina: "Probleminhas".

Mas, naquela mesma tarde, resolvi abrir o jogo. Eu já andava pela casa percutindo o intestino qual um interno de hospício que, sem se dar conta que lhe foi tirado o tambor há anos, segue achando que é Carnaval. Não tô legal, cara. E ele segurou primeiro o riso, depois meu corpo cansado pela luta travada em vão com as entranhas.

Fomos juntos à farmácia comprar o que Pedro chamou de arsenal. Sei que as metáforas explosivas de meu cônjuge soam indecorosas em um ano tão obscuro para o mundo, mas vamos, mesmo em um ano também tão temerário para quem escreve humor, entender a beleza desse momento.

Um homem tão bem apessoado, que podia, dada a sua juventude e largura entre escápulas, apenas abraçar toda a plenitude de um verão com moças menos complicadas, escolheu, pelo terceiro ano consecutivo, manter o foco em uma única mulher já conhecida como "cada hora é uma coisa" e acalmá-la, comprando toda a sorte de fitoterápicos estimulantes e glicerinas desonrosas. Nos divertimos e rimos tanto na farmácia que parecíamos crianças excitadas com aquele brinquedo em que martelamos a cabeça de uma minhoca que insiste em se esconder. Já combinei com minha flora intestinal, em nome de uma relação pautada também pela leveza, uma prisão de ventre por bimestre.

Mais tarde, em casa, preparei o banheiro com as duas últimas revistas "Piauí", celular bem carregado e chá de hortelã. Dei entrada às oito da noite e só retornei à rotina comum cerca de duas horas depois. Durante esse período, recebi "emojis" de coração, fogos, aplausos, champanhe, cocô sorrindo e mãozinhas rezando (ou é "give me five"?) no celular. Era o Pedro torcendo por mim. Foi seu modo de dizer "estamos juntos" e "vai dar tudo certo". Quando, por fim, ele perguntou "aleluia?" eu já não sabia mais se falávamos de dejetos ou felicidade. Existe amor na vida real e ele é ainda mais bonito.

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