Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

O abraço

Eu estava na rua Harmonia, saindo de um almoço, e me culpava pelo sapato tão difícil em um dia tão difícil. Poucas coisas me suscitam maior desproteção do que me sentir mal parada em dias que é necessário despachar-se com velocidade.

Percebi que fazia aquilo de novo. Prensar a mandíbula, me mastigar pra acabar logo com isso. Depois sempre vinha a enxaqueca. Depois o remédio da enxaqueca me daria gastrite. A gastrite me faria comer mal. Comer mal baixaria minha resistência e eu pegaria alguma virose. A virose me faria respirar pela boca, que me faria dormir mal, que me faria, lá pro terceiro dia dormindo mal, tomar um remédio pra dormir bem. E então, quando eu parasse com o remédio, depois de uns dois dias dormindo como só os bons filhos que ainda moram com as boas mães dormem, eu apertaria o maxilar, querendo me triturar pra acabar logo com isso. Cada saliva produzida é uma nova chance de recomeçar o círculo vicioso da autodanação diária.

Eu checava minha própria voz em um WhatsApp de voz (vocês também fazem isso? Um misto de "xeu ver se sou sexy?" com "xeu ver se falei tudo que tinha pra falar" com "só me coloco no lugar do outro quando é pra receber uma mensagem minha") quando um Kia Soul vermelho brecou secamente. O decrescer do vidro revelou gradualmente pedaços de um rosto habitual. Parecia um jogo do Silvio Santos "maô-ê, de quem são esses olhosamm?". Primeiro uma testa conhecida, então um nariz conhecido, daí uma boca conhecida.

Sim, era ela. Há quanto tempo! Muito. A gente ainda se gostava? Acho que bastante até. Ela acenou ansiosa e eu me entreguei –talvez pelo cansaço de pertencer ereta ao par carrasco de pisantes– a um desejo desenfreado de abraçá-la.

Minha amiga parou o carro na contramão, coisas de um apreço urgente, de uma irrupção que perderia significado e charme se desperdiçasse o ímpeto. Saiu do carro. Deu pulinhos de "não acredito". Eu comprei a farra e decidi que atravessaria sem olhar direito. O rapaz da moto me xingou. Espalmei capôs furiosos com distendidas linhas da vida. É pra um enlace, camarada iminente. É pra um afeto, buzinaços da intolerância. Só alguns segundos do seu egoísmo e poderá ocorrer um encontro nessa tarde! Ninguém naquela fila de motores queria negociar com minha necessidade de encaixe humano. O que eles ganhariam ao dividir asfalto com fôlegos alheios? Um mundo melhor? Eles preferem que o dólar baixe.

Percebi que minha amiga apertava os olhos e ria. Um medo que eu me machucasse mas também um jeito de saber que estávamos salvas apesar de tudo. Ainda mais agora. Uma intimidade que poderia voltar se permitíssemos. Ah, eu permitiria, eu estava cansada desses sapatos esnobando o chão, desses escapamentos cuspindo pressas tóxicas, desses almoços estreitados entre o espera um pouco e o não demore muito, desses faróis esbugalhados pra inércia.

Seria rápido. A gente se abraçaria e pronto. Só quero me descansar um pouco em você. O queixo um pouco no seu ombro. Percebe como os músculos do pescoço não dão mais conta do peso da cabeça? O que aconteceu com a gente e com os músculos do pescoço? Como é que tá? E o que mais? Sim, vamos marcar com calma. Fui chegando perto, sorrindo. Ela rindo. Quando paramos frente a frente, concluímos: nunca tínhamos nos visto na vida. Pedi desculpas, ela pediu desculpas. Foi ridículo.

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