Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Mora dentro de minha pessoa uma vovó reaça

Crédito: Marcio Fernandes/NOPP GINASTICA - FEMININA - RIO DE JANEIRO/RJ - 07/08/2016 - As ginastas brasileiras, durante prova classificatoria por equipe na Arena Olimpica, durante as Olimpiadas Rio 2016. FOTO: MARCIO FERNANDES/NOPP
As ginastas brasileiras, durante prova classificatória por equipe na Arena Olímpica

Mora em minha casa, mais precisamente dentro de minha pessoa, uma vovó reaça. Podemos chamá-la também de tiazola da negatividade ou senhora vodu. Ela é exatamente como eu, mas mais corcunda, infeliz e sem lubrificação.

Um dia antes de começar a Olimpíada, ela correu pro meu Facebook e escreveu algo como "vai começar essa droga" (a versão dela tinha palavrões). Muitos amigos apoiaram "isso mesmo, nosso povo sofre tanto e...". Mas vovó reaça não estava exatamente preocupada com as mazelas do país. O que ela odeia mesmo é festa, é amontoado de gente mandando tchauzinho, é bar abarrotado de pessoas querendo amar frugalmente, é rua travada, é seu direito de ir e vir congestionado (como se ela saísse de casa!). O que pega é que a vida não para só porque a tiazola da negatividade tem tantas dores na cervical e frio nos pés.

Eventos com jovens muito felizes costumam ser seus desafetos por excelência. Mais do que o barulho e a sujeira que eles fazem, mais do que as besteiras que eles urram, protegidos pela armadura do pertencimento grupal, o que incomoda mesmo, vamos falar aqui a verdade, é tanto colágeno. As bochechas com o viço dourado-sangue, os olhos explodindo de tanta esperança e luxúria, a vontade de continuar na rua mesmo depois de 20 horas sem comer ou dormir ou tomar um relaxante muscular.

Não é fácil dividir moradia com um ser humano tão sombrio. Outro dia, espiando uma briga pela varanda, eu preocupada se as pessoas iam se machucar, vovó reaça queria era mais derramamento de ofensas. Isso deve trazer à sua vidinha monótona aquela pontinha de perversão perdida em tanta terapia. Antes ela simplesmente transava com pessoas erradas. Agora, soterrada por 15 anos de Freud, a senhorinha vodu só goza ao admirar as desgraças animalescas de quem não vive sob o domínio do autocontrole. Ah, que vontade louca vovó tem de perder as estribeiras!

Mas no último domingo aconteceu um negócio bem bonito. Tiazola da negatividade tava aqui, deitadona no sofá, comendo a sua maçãzinha "única coisa que não me ataca o estômago" e começou a ginástica artística feminina. Aquelas meninas tão novinhas e tão bonitas. E tanto equilíbrio, pirueta, força e ginga. Vovó reclamou um pouco, ficou um tanto aflita em seu estilo idosa que vê desgraça em tudo: "Ai se essa criança quebrar o pescoço, morre na hora!". Mas de repente ficou quieta, disfarçou umas lágrimas... e acabou chafurdada num choro infinito. Confessou que estava segurando esse rio lacrimal desenfreado desde a festa de abertura, que considerou primorosa (menos as roupas de flechinhas e as bicicletinhas floridas –concordo).

Desde então, nos emocionamos todos os dias. Ouro no judô, beijo lésbico no rúgbi, vôlei feminino, vôlei masculino, o menino de 19 anos que fez gol. A gente não lembra muito o nome das pessoas, mas chora e torce sem parar. A coisa de ficar muito ansiosa com tantas competições no mesmo horário nem chegou a piorar nosso sopro na válvula mitral: estamos protegidas pela felicidade. Temos um pouco de tesão nas bolotas-chupões no corpo do Phelps. É muito tesudo um cara que ganha dois ouros em tão pouco tempo. Quem diria! Tiazola da negatividade falando tesão e tesudo em tão pouco tempo! Quando mostra o povo nas arquibancadas mandando tchauzinho, a gente devolve o tchauzinho. Ontem senhora vodu, depois de procurar passagem pro Rio (fiquei chocada!) defendeu o Brasil (fiquei boquiaberta!). "Brasileiro não torce errado, seu Zé Mané gringo, é que brasileiro é beeem mais legal que você!".

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