Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu

Nostalgia do mal

Aos poucos me tornei mais uma cronista boazinha que mantém a leitura em dia

Velas e boneco de vudu
Velas e boneco de vudu - Rainer Fuhrmann/Fotolia

Preciso confessar uma saudade profunda de ser péssima. De ser despeitada, amargurada, vingativa, invejosa, biliosa, um ser humano menor. Essa sou eu e estou cansada de disfarçar.

Eu era deliciosamente ridícula até começar a escrever essa coluna e receber críticas construtivas de amigos intelectuais, leitores refinados, colegas militantes, vizinhos politizados, conhecidos espiritualizados, parentes bem-intencionados.

Não fale de você, fale das minorias! Não invente um personagem, aponte uma personalidade contra as minorias e a destrua. Não fale sobre exercitar seus glúteos e sim sobre os absurdos do Exército ou o fundamental exercício da sororidade.

Aos poucos fui me tornando mais uma cronista boazinha que mantém a leitura em dia e um lugarzinho no céu dos ateus. Uma pessoa bacana que pode tranquilamente participar de uma mesa de debates importantes para a sociedade. Ser aceita, ganhar brindes orgânicos, ser marcada em fotos com gente que usa bata (saia rodada, ostenta biblioteca em casa) e sorrir ao lado de celebridades equilibradas e engajadas.

E nisso fui recalcando minha indecência, minha mesquinhez, mil anos de vexatórios pensamentos fúteis e autocentrados dançando ácidos pela goela sufocada. Pare de escrever sobre suas angústias e tente escrever sobre “uma viagem para descobrir a verdade sobre aquele seu parente exilado”. Que parente? Na minha família a gente só vivia exilado por motivos de fobias e falta de dinheiro.

Fiquei muito triste com a prisão do Lula. Lamentei tremendamente os fogos, os idiotas gritando felizes em suas varandas. E aqui não defendo o ex-presidente, mas sim o que ele representou. Todos nós sonhamos (em 2010 sua aprovação era de quase 90%) e não sofrer minimamente com sua chegada na PF é sinônimo de não ter entendido nada.

Tentei escrever um texto lindo que falasse sobre governar para os pobres (putz), para a multidão que o ergueu, sobre acreditar num mundo mais justo, mas travei na frase “todos nós sonhamos” (que considerei extremamente brega) e passei o dia googlando “pijama seda tipo quimono” e “pijama cetim tipo kimono” no Google porque essa sou eu, amigos. Eu estava sensibilizada, eu estava lendo todas as notícias, mas eu também estava era bem focada em comprar essa iguaria para abrilhantar meu belo corpinho doméstico. O texto não saiu a tempo.

No colégio eu tinha um enorme problema chamado Carla. Ela me detestava de forma tão transparente que contorcia a boca em nojinho despudorado dois segundos antes de cruzar comigo pelos corredores.

Gostava de me humilhar na frente dos outros, ria das minhas roupas muito largas, do meu cabelo muito cheio e posicionava o ventilador da classe de modo a piorar a minha rinite. Carla era bailarina, alta, rica e muito perua. “Um dia...” Eu só pensava isso. “Ah, Carla, um dia”. Até hoje não teve um roteiro que escrevi que não tenha como único foco destruir Carla. Espezinhar, bestificar, dar-lhe doenças e solidão, tirar-lhe a pele e a carne e esquartejar seu espírito até a nona encarnação. E é impressionante como as pessoas consomem essa retaliação. Carla me deu quase tudo que tenho. Cansei de responder nas entrevistas que devo tudo a Tchékov, a Camus, às feministas, ao professor de literatura da pós que fiz na USP. Que nada! Eu devo tudo ao ódio desmesurado que alimentei por Carla, recreio após recreio. Ano após ano. E até esse segundo. Ah, que alegria vê-la obesa, desempregada e casada com um mano bizarro em sua página com poucos amigos. Eu quero é escrever sobre Carla! (Que sempre foi contra as minorias, então tá tudo bem.)

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