Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu

Louca, sinônimos

Ele dizia que ela era como uma feijoada, ninguém aguenta todo dia

Já nem lembro mais o nome da mulher. Tampouco, o nome dele. Ela era conhecida como louca. Ele, o marido da louca.

Quando começaram a namorar, o esporte preferido do inseguro ejaculador precoce com pitadas de paumolescência era dizer que sua amada, maluca demais para sentir prazer, tinha sérios problemas sexuais.

A desequilibrada moçoila, apesar da depressão lhe sugerir erros no percurso, seguiu naquele relacionamento. Uma vez sendo assexuada, era o melhor que arranjaria.

Quando começaram a dividir moradia, a desculpa preferida do obeso (cardíaco, viciado em chocolate, fritura, álcool e barbitúricos), para gozar da “exclusiva companhia de si mesmo”, era o infortúnio de amar uma doida que tanto fardo lhe pesava à saúde. Para o bem da relação, ela deveria visitar, com frequência e comprazimento, o máximo de parentes interioranos que coubesse nos descansos do calendário.

A perturbada senhorita se enfiava em um ônibus e, mesmo sem nenhum interesse em rever primos com dentes péssimos, acreditava ser intensa demais para ser “sempre”. “Você é como uma feijoada, ninguém aguenta todo dia”. Ela nunca entendeu porque a sentença jamais lhe soara como elogio.

Quando ela quis voltar a trabalhar, o mimadão machista, temendo não ter mais a jantinha o aguardando todos os dias às exatas 20 horas, temendo perder para os encantos do mundo a escrava que ele demorara anos instruindo, a apoiou completamente. “Mas caso você tenha algum acesso de demência no escritório, você me chama!”

Quando tiveram um filho e depois outro, a ausência preferida do progenitor era em finais de tarde. O sonoro cansaço das crianças, as brigas relacionadas às obrigações com a higiene, as febres que insistiam na indagação “se não é nada, por que é febre”? Nada disso era problema para o pai do ano. O que pegava mesmo é que, ele nunca soube explicar o motivo, sua esposa ficava completamente insana naquele horário. “Na hora da bruxa eu saio de casa”, ele dizia aos amigos, rindo. Tudo para proteger aquele casamento, aquele arranjo, aquela família.

A desvairada matrona, a essa altura da vida já viciada em remédios para acordar, remédios para dormir, remédios para se manter acordada, remédios para se manter dormindo e remédios para se lembrar de todos esses remédios, agradecia a Deus antes de dormir: quem diria que ela, esse lixinho delirante, esse amontoado disforme de exaltação, teria um homem tão bom ao seu lado?

Um sujeito que, apesar de tudo, a aturava, aceitava, suportava. Um cara que, apesar de tudo, nunca foi embora. Às vezes, mais livre, numa centelha de vigor, num lampejo de presença, ousava pensar “ele nunca foi embora porque nunca esteve aqui”. Mas, rapidamente, balançava a cabeça se recordando de sua condição constitutiva: era alienada, desatinada, tresloucada.

“Eu só te protejo de você mesma”, o marido da doida argumentava quando, estando ela cansada de viver numa masmorra sentimental, tentava galgar alguma decência, almejava fugir do subterrâneo a que fora submetida, sonhava frequentar o mesmo planeta que seu cônjuge. “Que bom homem!” era a frase, em neon pulsante, tatuada em todas as gigantescas entrelinhas de todos os parágrafos não ditos.

Quando, finalmente, pesando menos do que o mínimo para surtar, a companheira louca do meu conhecido pirou de vez, este foi ao delírio. “Eu disse!!!”. “Eu disse!!!”. Ele teria se besuntado em álcool e ateado fogo, nu, em plena Paulista, não fosse a mania em ponderar alegria. Ele se regozijava descontroladamente (sentido figurado pois era a estabilidade em pessoa). Ele esteve certo por toda uma vida! Toda a loucura do mundo estava nela, a ele, o grande salvador, cabia apenas ser o mais sensato dos seres.

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