Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu

Oi, vocês têm H3N2?

Parece que esta última versão já vem com a selfie perfeita

 
Capas para iPhone em loja de shopping
Capas para iPhone em loja de shopping - Issei Kato/Reuters

O reclame com batidas eletrônicas e um robô em 4D espirrando pixels mexeu demais com aquele senhor. Correu para o shopping. O amontoado de gente, apesar da desculpa “Promoção de Dia das Mães”, só poderia estar na loja pelo mesmo motivo que ele: nada melhor do que uma multidão enclausurada para adquirir o vírus recém-anunciado.

“Oi, vocês têm H3N2”? O vendedor não entendeu e chamou o gerente. O gerente, precisando bater metas nem que fosse enganando maluco, ainda tentou convencê-lo a comprar um fone de ouvido que anula “as vozes”, um carregador “com fio bem comprido” ou uma capinha de celular que imita a caixa do Rivotril.

Cansado de ser enrolado, o senhor se irritou. Falava alto. “Vocês têm ou não H3N2”? Casais se cutucavam, crianças sentavam para assistir, uma vlogueira desconhecida filmou tudo. O segurança, que estava com pigarro catarrento, nem precisou chegar muito perto para acabar com a festa, o senhor já logo entendeu que só tinham o modelo antigo e se acalmou: a nova versão vem com tosse seca.

Desde que um gênio de camiseta preta e calça jeans anunciou a primeira influenza, os fãs nunca mais conseguiram parar. A, B, 1, 2, 3, H, N, porco, ave, asiática, australiana. Até onde a humanidade iria para se sentir parte integrante da própria humanidade?

Pensou que talvez fosse muito velho para exibir uma H3N2, talvez o preço a pagar fosse altíssimo, talvez tivesse que pedir ajudar aos mais jovens. Dane-se, ele estava obcecado e realizaria esse desejo nem que fosse o último.

Leu no jornal que, nos EUA, os mais insalubres acordaram cedo e fizeram fila na porta. Queriam ser os primeiros. Em alguns países da Europa e da Ásia, a novidade também tinha se transformado em uma grande febre.

Quem não tinha condições de adquirir os lançamentos, vinha com aquele papo de “Ah, mas da H2N2 pra H3N2 mudou o quê? Calafrios a um simples toque? Piriri dual chip? Download de golfo com maior velocidade? Não percebe que isso é tudo manipulação dos laboratórios para ganhar mais dinheiro? O carregador da moléstia antiga não serve na nova só pra ferrar com os trouxas!”. Mas o senhor não estava nem aí, o importante era ser um vencedor e, no Brasil, isso obviamente está relacionado a ter o que acabou de vir de fora.

Imagina chegar no trabalho com armazenamentos de influenzas passadas e ver a mesa ao lado vazia? Justo seu melhor amigo (e também maior concorrente) internado, ostentando a última geração? E ele lá, ainda apegado ao surto de H1N1, sem ter com quem conversar, ostracizado pelas pessoas, com o mesmo respeito condescendente que temos pelos coitados que usam celular Samsung?

A esquerda irá acusá-lo de capitalista, a direita dirá que ele nada mais é do que um simpatizante das massas, mas aqui vai seu grande trauma: ter se vacinado em 2010. A aviária tomou toda a cidade naquele ano. Nos restaurantes, andando nas ruas, desatentos para sair com o carro quando o sinal abria, todos estavam com as mãos ocupadas enviando mucos, atendendo tosses, mandando espirros. Ele, saudável, se sentia pelado ao sair de casa. Procurava nos bolsos e nadinha. Saia livre, sem lenço e sem documento do plano médico. Aquela bochecha corada era a prova bastante viva de sua solidão.

Parece que essa última versão vem com a selfie perfeita: o nariz é mais vermelho, a olheira é mais cinza, a palidez é #semfiltro. O espaço e a agilidade para “baixar’” a imunidade também aumentou consideravelmente. O problema é que ele procurava, procurava e nada de encontrar.

Ontem, no Jornal Nacional, a repórter informou que a H3N2 ainda não existe no Brasil. Muito se fala, muito se teme, mas é tudo fake news. Este país é mesmo atrasado.

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