Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Irritações

O bocejo, quando não é discreto e quase imperceptível, é uma mensagem cifrada de provocação

Leoa Nina, dentro do recinto onde vive, no Zoológico de São Paulo. (Foto: Gabriela Di Bella/Folhapress) - Folhapress

A pessoa que boceja cantarolando ou que fala uma frase inteira com voz de monstro derretendo porque solta um bocejo no meio da conversa, ela não faz isso por falta de caráter. Na hora eu tento me convencer de que tem gente muito pior no mundo, cometendo atrocidades reais. Porém, qualquer raciocínio só chega depois de eu já ter lançado minha cara de “não fosse estranhíssimo, eu te daria agora um pescotapa bem forte” para o muito sonoro bocejador.

Algumas pessoas bocejam fazendo som de cobra peçonhenta prestes a atacar; outras parecem ter um “orgasmo de idoso tendo um infarto durante o orgasmo”; tem gente que boceja fazendo cara de “que vida de merda, vivo com sono, odeio essa vida de merda, odeio estar acordado agora, então vou bocejar bem alto mesmo, que é pra incomodar todo mundo desse planeta de merda”. Enfim, o ato de oscitar, quando não é discreto e quase imperceptível, é uma mensagem cifrada de provocação. O bocejo-grito-primal não é só soninho e cansaço, é um jeito de o camarada te dizer que pouco se importa com a grandiosidade alheia —ele preferiria mil vezes estar desmaiado.

A mesma raiva tenho de quem não consegue espirrar sem fazer escândalo. Oi, amigo, é só vírus borrifando pelas suas narinas, talvez apenas rinite por conta de um casaco mofado. Às vezes o infeliz só viu um gato e começa uma sequência infinita da mais irritante das esternutações: a psicológica. A pessoa foi mimada por avós culpados, então só falta pegar um banquinho e se expor em praça pública com direito a faixas e cartazes: “Vai começar! Um espirro bem dado! Venham ver!”, e chuva de papel dourado picado. Tem gente que grunhe espirrando. Pula, se chacoalha, tenta tirar da orelha direita uma imaginária água do mar das férias de 2007. Mano, baixe a sua bola, bebês espirram, cachorros espirram, ratos espirram. Pare de alardear a parcela mais reles de sua humanidade.

Alguns dos espirros que invadem meu escritório vêm de um apartamento que fica num prédio empresarial... numa esquina do outro lado da minha rua. E dá para escutar! Poxa, o cara espirra de outro CEP e eu ouço! As pessoas, pelo amor, deveriam ser menos audíveis. As pessoas deveriam gostar menos de suas merdinhas. Levar menos a sério suas coisinhas.

Quando eu era criança, vi uma prima palitar os dentes e depositar com a língua os fiapos gordos no guardanapo (e certamente se sentir muito fina por executar essa segunda etapa). Foi ali, num churrasco com Fanta uva e um cachorro chamado Dog, que eu jurei um dia pertencer a um mundo com pessoas que não cutucam, com vara curtíssima, restos de animais mortos entre os dentes. De lá para cá, Deus me castigou e toda vez que vou me alimentar, seja em casa, na esquina, na padaria, num restaurante metido a besta, sempre haverá uma pessoa palitando os dentes (ou apenas fazendo muito barulho "degustativo", o que é igualmente insuportável) a uma distância suficientemente agressiva de mim.

Por fim, vamos ao primeiro lugar da lista de irritações. Quando o narrador de um jogo de futebol importante, como os da Copa, faz propaganda da novela ou o repórter de trânsito da rádio manda uma propaganda tosca só faltando cantar o jingle da marca. Eles mudam a voz, dá muita vergonha: “E, na Marginal, a quantidade surreal de carros causou 2.000  horas de paralisação nos dois sentidos, mas... O gerente está louco! Corra para garantir agora o seu zero quilômetro”. Ou ainda: “Se fulaninho marcar esse gol, o outro time já pode comprar a passagem de volta, mas... Não perca, no capítulo de hoje, Rosemary vai descobrir que a sua mãe é na verdade o fantasma do seu pai incorporado na tia que a criou”.

Abençoado seja o silêncio.

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