Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

No lugar do cachorro

Achei que ele queria ser meu amigão, mas queria me agarrar

Hoje levei a minha cachorra ao petshop para tosar, e uma senhora puxou papo comigo. "Ah que belo bebezinho", ela disse. "Eles são tudo na nossa vida!" Lancei meu sorriso "concordo, mas obviamente discordo" e encerrei ali a conversa. Não deixei de amar minha cadelinha, mas depois de ter uma filha de verdade, ela passou a ocupar o magnífico lugar de um animal querido, não mais o de um adorado rebento humano.

cachorro tati bernardi
Chica, a cadelinha da Tati Bernardi - Arquivo Pessoal

Já fui o tipo de moça "louca para colocar a maternidade em algum lugar", de modo que tratei namorados como filhos, pais como filhos, colegas de trabalho como filhos e, sim, ninava meus cachorros envoltos em mantas em noites de frio

A tosa demorou mais de uma hora, e fiquei fazendo uma lista mental de todas as pessoas que já ocuparam lugares trocados na minha vida.

Quando comecei a estagiar em propaganda, tive um chefe que era uns 30 anos mais velho, e nutri por ele uma espécie de devoção filial. Quando ele foi demitido, chorei por mais de uma semana me perguntando o que eu faria da vida longe daquela figura tão paterna.

Foi quando ele disse, em sua despedida, um tanto alcoolizado: "Mulher chorando é como violino, a gente põe no colo e passa a vara". Até a parte de pôr no colo eu estava vibrando "sim, ele também vê em mim uma filha!", mas a continuação da frase me obrigou a amadurecer na marra. Nunca mais gostei de ninguém como um pai —a não ser do meu próprio pai.

Tive um avô tão gente fina que para sempre amarei infinitamente todos os idosos. Mas é preciso tomar cuidado. Quando tinha uns 15 anos, estava eu caminhando no parque Piqueri, no Tatuapé, quando um vovozinho de bochechas coradas veio em minha direção. Eu pensei "que fofura, ele quer ser meu amigão", mas no caso ele estava querendo mesmo era me agarrar. Velho tarado filho da puta. Empurrei o desgraçado e sai correndo. 

Nunca esqueço um almoço, há mais de dez anos, em que duas amigas casadas falavam mal do marido e eu as interrompia o tempo todo para falar mal da minha mãe. Contei isso na terapia, e minha analista me obrigou a "terminar" com mamãe e sair de casa. Aluguei um apartamento na mesma rua, foi o que deu para fazer na época.

Meu melhor amigo me atura diariamente mandando mensagens com as "quentinhas" a respeito da saúde dos meus pais. Ele sabe datas de ressonâncias, exames, retorno ao geriatra. É muita solidão ser filha única de pais que um dia vão envelhecer (ainda não!), e meu amigo interpreta lindamente o papel de "um irmão para que a vida doa menos".

Recentemente, e com muito atraso, vi as primeiras temporadas de "Homeland" e me apaixonei completamente pelo Brody (interpretado pelo ator Damian Lewis), personagem ultracomplexo (contém spoiler) ora pai de família coxa, ora selvagem misterioso, ora defensor da América, ora detrator da nação (por motivos nobres).

Quando assisti ao episódio em que o Brody morre (eu avisei que tinha spoiler), fiquei dias, semanas, talvez um mês deprimida. O que estava acontecendo? Brody ocupava o lugar de um amante tórrido que eu, tentando ser correta pela primeira vez na vida, não poderia ter em carne e osso. A sorte é que Damian ressuscitou bilionário em uma nova série. 

Quando criança, eu era o Lampião, o Super-Homem, o ET, o Ferris Bueller, o Axl Rose. Muitos anos depois, a Carrie Bradshaw encerrou minha fase tomboy. 

Após toda essa digressão, Chica, minha cachorra, voltou tão linda e feliz do banho que retomei a conversa com a senhora que queria papo no petshop: "Sim, eles também são tudo na nossa vida!"

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