Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Vazio

E se eu escolhi um lugar que uma cidade inteira resolveu rejeitar?

Restaurante na av. Kennedy, em São Bernardo do Campo, no grande ABC
Restaurante na av. Kennedy, em São Bernardo do Campo, no grande ABC - Fábio Mendes/05.jun.15/Folhapress

Marquei de almoçar com uma amiga no restaurante em frente ao prédio onde atende a minha terapeuta. Como desengulo boa parte de meus embrulhos estomacais na sessão, costumo sair de lá, exatamente ao meio-dia, com bastante espaço. Estar com fome, diferente do vazio na barriga, quer dizer que está tudo bem.

Para ir do compromisso um (terapia) ao compromisso dois (almoçar em um restaurante), que envolve o compromisso três (com uma amiga), levei o tempo de atravessar uma rua. Imagina se sempre fosse assim em São Paulo? Seríamos insuportavelmente felizes. 

Devidamente despejada as neuroses, comeria picadinho, encontraria uma amiga querida que nunca consigo ver e “ticaria” três afazeres previamente agendados com a facilidade, com a banalidade, de passar de uma calçada a outra. Quando o dia segue assim delicado, acho até que fico com a voz mais doce e meus braços param de se mover desembestados por me faltar tempo e, sobretudo, dinheiro guardado.

Em suma, eu estava empolgada o suficiente para resvalar no terrível sentimento que cataloguei desde a pré-adolescência como “tô tão eufórica que precisa acontecer logo algo ruim antes que eu tenha uma crise de ansiedade por esperar algo ruim”. E o algo ruim se revelou rápido para mim: o local estava escandalosamente desabitado, impecavelmente livre.

“Está fechado?” “Não.” “Eu sou a única?” “Você é a primeira, senhora.” Quis sair correndo, mas o choque foi tanto que acabei pedindo uma água. Mandei mensagem para a minha amiga: “Estou sozinha” e ela prontamente se desculpou, dizendo que não demoraria. “Não, você não está entendendo. Não me refiro ao seu atraso. Estou completamente deserta aqui, o restaurante não tem viva alma.” “Calma, ainda é cedo.”

“Não sei, e se não vier ninguém?” E se eu escolhi um lugar que uma cidade inteira resolveu rejeitar? Não, não tenho estômago para isso. E se hoje saiu uma matéria sobre os ratos da cozinha? E se os últimos meses, como é de costume no bairro, aniquilaram a reputação desta casa apenas porque outra novidade vintage-cool-modernete-clássica surgiu e fechou e reabriu a poucos metros? E se hipsters estiverem escondidos rindo da minha cara? 

Mudei de mesa para uma bem na entrada. Fiz cara de coitada para as pessoas passando na rua. Por favor, pelo amor de Deus, entrem aqui. Não me deixem sozinha no Natal, no meu aniversário, na virada do ano, na doença e na alegria. Seria a crise?

Quase fui para a rua com um megafone: “Tem cara de caro, mas tem prato do dia baratinho” ou ainda “À noite é caro, mas no almoço tem cardápio executivo”. Puxo papo com o garçom. “Trocaram o cardápio, o chef, o dono? O picadinho tá sem ovo?” “Não, senhora, se acalme, a senhora gosta de lugar cheio?” “Não, eu odeio.” Mas vazio é tipo um cheio piorado. Vazio não dá.

Ops, chegou uma mocinha bem-vestida! As pessoas de bom gosto ainda ousam pisar aqui. Eita que na sequência entrou um velho pigarrento trazendo toda uma tradição. Mãe e filha pararam na porta, o que esperam? Ufa! O pai que foi estacionar. Um cara tatuado, acompanhado de um cachorro que parece ter página no Instagram, pediu um steak tartare: estamos salvos!

Começou a encher e tiveram que ligar o ar-condicionado. Depois, a melhor parte, estava tão cheio que nem dava mais para sentir o ar-condicionado. Quando minha amiga chegou, estava tão insuportavelmente abarrotado que nem consegui levantar para abraçá-la, foi impossível ouvi-la direito, ficou tudo tão ruim que eu me acalmei. São Paulo é um inferno.

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