Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Saudade de odiar outras coisas

Ocupados detestando eleitores de Bolsonaro, esquecemos a velha lista de repelidos

Lembra quando a gente odiava quem faz barulho para sorver o café quente? Quem comenta o filme alto no cinema? Come bala como se quisesse chamar a atenção para ser resgatado numa ilha deserta? Palita os dentes e coleciona fiapos gordos de carne em guardanapos abertos? Quem boceja gemendo? Demora oito vidas para escolher ervilhas no self-service? Fala futilidades esganiçadas e nasaladas para a "tipo assim, amiiiigaaahhh" no viva-voz do celular em sala de espera? Nos devolve o carro no vallet com cheiro de pum quente? Éramos felizes e não sabíamos o que vinha pela frente. 

Lembra quando a gente tinha raiva de quem assoa o nariz à mesa em restaurante? Fala de boca cheia e um meio grão de arroz vem parar em nosso antebraço? Usa tanto perfume que precisamos passar o resto da semana tratando do fígado? Dos participantes do reality show Alto Leblon (uma das moças tinha como profissão estar noiva!)? De festa em casa de rico que quanto mais rico menos serve comida de verdade? De médico que cobra como se fosse o doutor House e não responde WhatsApp? Dos corretores de imóveis que vendem nosso telefone para outros 200 corretores de imóveis, e mesmo depois de comprarmos uma casa passamos mais 20 anos atendendo semanalmente pessoas querendo vender casas? Bons tempos.

Lembra quando nossos maiores inimigos eram os folgados que furam fila, vão pelo acostamento, não oferecem o último pedaço, mantêm amizades pensando o que podem ganhar com elas? Jovens senhoras que injetam testosterona na alma e garantem que a bunda dura é herança de família? Vendedoras de lojas que se autointitulam nossas melhores amigas e mandam mensagens fofas às sete da manhã? Até esses tipos eram boas pessoas.

Estamos tão ocupados em abominar os eleitores do Bolsonaro que esquecemos da nossa velha e boa lista de repelidos. Que saudade de odiar essas pessoas maravilhosas! Em tempos de "o coiso não", até quem separa o lixo reciclável, mas trata mal o porteiro ou gosta do filme "Na Natureza Selvagem", desde que não seja eleitor do Pocketnaro, se tornou digno de "opa, como vai?" no elevador.

Eleitoral do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), em frente ao hospital Albert Einstein, zona sul de São Paulo - Nelson Antoine - 07.set.2018/Folhapress
Na escola eu tive um professor de história chamado Nicolau e, meu Deus, como esse homem me destratava! Era bullying. Era assédio moral. Escroto dos infernos! No prezinho, tive uma professora chamada Tânia e ela me bateu porque, no Dia dos Pais, improvisei na dança e não fiz os passinhos exatos que ela mandou. Não bancou minha criatividade, aquela vaca. No colégio, um desgraçado chamado Binho certa feita me apelidou de "Sensem" (sem bunda e sem teta). A primeira vez que fiz exame de urina na vida (eu devia ter uns quatro anos), um enfermeiro top five na minha listinha de "pessoas para sofrerem com herpes anal crônica" me beliscou. Enfim, tudo gente que merecia estar presa eternamente em uma montanha-russa que travou quando estava de ponta-cabeça e no escuro, mas, se não forem votar no coisa-ruim, periga até a gente retomar uma amizade.

Lembra quando nossa irritação era com o arroto do tio sem noção que tomava Coca-Cola no gargalo? Nosso nojinho era do cheiro de talco misturado a despeito da tia Cidinha? Nosso incômodo era porque o primo Juninho usava camiseta com o logo Abercrombie & Fitch gigante e em relevo peludinho? E a gente puto porque eles defendiam o Alckmin? Nossa, como eram sujeitos da melhor espécie! Aff, até fã do Maluf se tornou parente querido. Vivemos tempos de barbárie!

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