Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Amigdalite

Meus gargarejos caseiros parecem tolos perto dessa crescente multidão bélica

Obra "O Grito" (1893), pintura de Edvard Munch
Obra "O Grito" (1893), pintura de Edvard Munch - Reprodução

"Ele não!", pensei ao acordar. Muito pequena, me lembro da minha mãe com medo de o pus voltar. Tamanho era o pavor de quem viveu os tempos da purulência, me davam antibiótico (anti-biótico: contra um ser vivo) antes mesmo de a temperatura aumentar. Acho que na adolescência amarguei alguns dentes amarelados por conta dos remédios. Depois, todo mundo que eu conhecia começou a apresentar diferentes aflições e padecimentos, e a amigdalite virou um passado (recente e doloroso) catalogado nos livros da estante do meu avô.

Mas hoje, justo hoje que eu queria falar tantas coisas, acordei com minha goela esmagada por seres invasores. Você pode dizer que eles são microscópicos, mas como se multiplicam rapidamente! A dor e a irritação que causam acabaram por me assoberbar de medo e desesperança. Esse exército de brancos e degenerados glóbulos não me serve de nada, só vejo o mal que me causam quando imprimem essa massa amarelo-esverdeada marchando sobre poças de catarro.

Hoje eu queria falar da minha decepção com uma grande amiga, da minha tristeza em relação ao meu pai, mas imagina sair da cama com essa febre! Queria colocar minha camiseta com uma tal hashtag, mas tenho medo de congelar. Não me falta coragem para resistir, mas, porque tenho filho, me sobra pavor de inexistir.

Queria passear com minha família no parque aqui perto, só que ontem me olharam em tom de ameaça no supermercado (eu estava tossindo para me livrar das bactérias) e desde então não consegui mais sair de casa.

Hoje eu queria falar que chorei ao ver aquele vídeo em que depredavam aquela placa. E queria falar que vídeo é esse e que placa é essa, mas meus gânglios estão enfartados. O berro dentro de mim tem um tamanho incompatível com a rouquidão do meu susto.

Não quero e não posso nunca mais debochar dos parasitas que usam a democracia da minha língua para infestá-la e, quiçá, destruí-la. A amigdalite lateja dentro da minha cabeça e me pede para suportar o lado mais complexo de uma luta. As amebas causam abcessos, mas, nós que somos feitos de carne e cérebro, temos a responsabilidade dual de suportar e acolher. Vai que a doença nos fortalece e acaba tudo bem e sem grandes traumas para o sistema linfático?

Na amigdalite, até a água pode ser tortura. Não consigo engolir nada, e meus gargarejos caseiros parecem tolos perto da multidão bélica que ganhou ainda mais força na última semana. Então te pergunto, o que fazer?

Estou aqui, totalmente obliterada pelo mal-estar dessa civilização que agora habita não só a doçura da minha fala, como também meus pensamentos febris. Esses bichos sem recalque me dão a sensação terrível de ser sufocada, enforcada e, o pior de tudo, calada.

Por meu sistema imunológico e por todos nós, gostaria de fazer hoje bem mais do que espremer um limão em um copo com água morna, mas estou de molho, deitada, atropelada pelo saudosismo da infância, quando tudo de ruim parecia ter sido erradicado do mundo justamente para celebrar a nossa chegada à terra.

Talvez mais tarde, quando os analgésicos fizerem efeito, eu deixe você com este pensamento: não é porque as bactérias dos intestinos superam a quantidade de células de todo o corpo que os nossos dejetos precisam ultrapassar a nossa capacidade de ser mais humanos.

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