Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

É preciso falar de amor

Nossa imensa lista de bobeiras é o mais perto que já cheguei de ser feliz

Depois de cinco anos morando juntos, ainda sinto disparar o coração quando ele volta para casa, seja porque foi rapidinho até o supermercado, seja porque passou alguns dias fora do país. É bem verdade que também o sinto disparar de raiva outras tantas vezes, mas foquemos o intuito de fazer um textinho afetuoso. Em tempos de tanto ódio, é preciso falar de muito amor.

Pedro fica com as mãos geladas quando está preocupado e com elas bem quentinhas quando eu é que estou preocupada. Se está mais ou menos frio, ele usa meias só até metade dos pés. Gosto de lhe dar pijamas porque ele os usa com uma obediência infantil que preenche mais meus buracos do que sonhou a protagonista do "Ninfomaníaca". Quando viu minhas "botas pantufas", reclamou que eu não tinha lhe comprado iguais. O prazer que eu tenho em vê-lo dormir aconchegado consegue superar meu próprio júbilo por dormir aquecida. 

Nós apelidamos a manta azul do sofá de "azulão" e todo dia brigamos para ver quem vai se enrolar nela vendo TV. Eu poderia apenas voltar na loja e comprar outra igualmente deliciosa e azul, mas a graça é justamente lutar pela coberta até em dias quentes. 

Tive muitas paixões avassaladoras que me deixavam sem apetite. Pedro, às vezes, reclama que eu estou tão relaxada ao seu lado que como demais e depois fico soltando miniarrotinhos sem perceber. Demorou toda uma vida para eu entender que amar é comer demais e soltar miniarrotinhos sem perceber, e não estar petrificada e sem fome diante de algo enormemente irreal. Pedro me pediu que parasse de escrever sobre miniarrotinhos —disse que estou obcecada.

Pedro achou ridículo eu gastar dinheiro com paisagista, mas quando seus amigos vêm aqui, ele mostra todo orgulhoso: "Essa é nossa parede com jardim vertical". Ele achou frescura comprar as caríssimas colheres Munchkin para nossa bebê, mas agora sempre que algo é muito bom, seja um filme, seja um pudim, ele diz: "Esse é Munchkin". E, nessas coisas pequenas e tolas, o dia acaba suportável, apesar de o casamento ser a pior das melhores coisas que podem acontecer a uma pessoa livre e louca.

Quando Pedro lançou um filme, 99% das críticas foram boas. Só teve uma, de um fulano que não entendeu nada do filme, que saiu um pouco diferente. Eu vi o momento exato em que ele abriu o jornal e leu aquele insignificante trechinho de bobagens. Sua chateação durou poucos minutos, mas o bastante para eu experimentar um amargor, um murro no meio dos seios, coisa que eu nunca tinha sentido ao ler qualquer crítica contra mim. 

Eu estava acostumada a ser uma namorada bitch, aquele tipo que torce para que chova o fim de semana inteiro quando o cônjuge decide viajar "só com os amigos". "Se escolheu ficar longe de mim, que tenha os piores dias da sua vida!" Chegava a fantasiar trânsitos horríveis, estradas fechadas, aeroportos caóticos, praias imundas, viroses. Para Pedro, eu quero que todos os seus dias sejam insuportavelmente ensolarados e plenos. 

Não sei quantos poetas, psicanalistas e frases de autoajuda já "disseram" que o verdadeiro amor é quando não sabemos ao certo porque o sentimos. Quem tem muitos motivos práticos para estar com alguém sente por esse alguém uma coisa chamada "motivos práticos", e não amor. Contudo, aprendi que nossa imensa lista de inutilidades, repetições e ataques de bobeira é o mais perto que já cheguei de ser feliz.

 
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