Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Eleições 2018

Melhore uma pessoa

Se não der até domingo, que ao menos siga sendo a sua missão para sempre

Aos 12 anos, o que eu mais gostava na minha amiga Gabriela era da obediência. Teve um domingo em que ela me implorou: "Hoje eu quero ficar com os meus pais", mas eu apareci na casa dela mesmo assim, na hora do almoço, e ordenei que ela fosse comigo ao shopping, ver garotos e comprar pulseiras com água e purpurina dentro. Gabriela era mais baixa que eu, mais tímida, mais pobre, mais gordinha.

Nunca vou esquecer o momento em que sua mãe, com toda a doçura e paciência do mundo, em vez de me escorraçar do hall de entrada do apartamento, me convidou para sentar à mesa, me serviu um pedaço de bolo de milho e me falou sobre enxergar os outros, respeitar seus limites, aquietar reservadamente meus monstros (porque o espaço alheio já estava preenchido pelas próprias angústias), ter carinho pelas pessoas e não interesse no que eu poderia usufruir delas. Ao final, porque ninguém é madre Teresa, aquela senhora foi abrindo a porta, chamando o elevador e me pediu que desse um tempo da sua filha. 

A colunista Tati Bernardi
A colunista Tati Bernardi - Arquivo Pessoal

​Saí da casa da Gabriela obliterada pelo peso de uma nova e assustadora maturidade. As pulseiras muito coloridas, os bolos de milho, as mães baixinhas, até hoje essas coisas me emocionam, porque lembram o dia em que aprendi fundamentos essenciais da decência e do convívio humano.

Aos 15 anos, o que eu mais gostava no meu amigo Lúcio era de seu sofrimento mal disfarçado quando eu falava de outros garotos. Cabelo rebelde, corpo estranho, roupas sem marca, eu também estava fora dos padrões de beleza, mas poder maltratar Lúcio era uma forma de negar meus próprios incômodos.

"O Fabinho, loiro de olhos azuis, filho dos donos dos supermercados 'Seiláquezinho', é que é demais!" Um dia, Lúcio percebeu que eu era uma vaca e mandou um sincerão: "Cara, você não é legal". Lúcio era tão melhor do que eu, do que o Fabinho, do que toda a oitava série, que rompeu com anos de maus-tratos sem fazer uso de nenhuma ofensa ou palavrão. 

Aos 18 anos, uma menina da minha classe da faculdade fez um "abaixo-assinado-piada" para expulsar um aluno, chamado Mateu, que ela havia apelidado de "ET gay". O garoto não riu e acabou mudando de curso. Eu não participei da "anedota", mas, segundo o professor de sociologia da época, nunca mais esqueceríamos nosso silêncio perante tamanho absurdo. Hoje eu queria dizer para o Mateu que me arrependo profundamente de não ter feito nada para barrar aquele atentado coletivo travestido de "brincadeira de adolescente".

Aos 20 e poucos, eu achei engraçado chegar ao trabalho contando que minha empregada chamava seu oftalmo de "o dotô das vista", e um amigo editor me levou para um canto e se deu ao trabalho de me explicar o óbvio: "Essa mulher de quem você está rindo pega três conduções por dia para limpar o seu banheiro".

Desde que me tornei colunista, nunca mais pude, por sorte, cometer impunemente deslizes sexistas, misóginos, xenófobos ou gordofóbicos. Minha raiva contra gente de intelecto limitado me mostrou que eu estava falando de mim. Minha crítica inescrupulosa contra os parentes conservadores me revelou que eu estava combatendo justamente o meu moralismo.

A cada dia, graças a amigos, professores, familiares e desconhecidos que não desistem, me torno um tantinho menos desprezível. Talvez, como diz Criolo na belíssima canção "Ainda Há Tempo": "As pessoas não são más, elas só estão perdidas". Melhore uma pessoa. Se não der tempo até domingo, que ao menos continue sendo a sua missão para sempre.

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